Por estes dias, há cem anos, corria em Lisboa o boato de que Afonso Costa defendia o monopólio dos fósforos. A 11 de Abril, o redactor político do Diário de Lisboa assegurava que não, embora na véspera o mesmo jornal tenha sustentado que sim. O tema raspava a lixa das relações entre bonzos e canhotos ao mesmo tempo que crescia a incerteza sobre se Afonso Costa participaria no congresso do PRP.
O peso da indústria fosforeira era enorme e aumentou durante o Estado Novo, explicando a introdução de um ridículo imposto sobre o uso de isqueiro.
A polémica dos fósforos surge um ano antes do exílio parisiense de Afonso Costa. Por esses dias, um jovem de 20 anos chamado José Redinha estava prestes a embarcar para Angola como jornalista e desenhador de arte. Redinha foi criando uma formidável colecção de objectos etnográficos que se constituiriam como peças essenciais do museu do Dundo que ele fundou. Evoco esta figura admirável, lamentavelmente esquecida, por causa dos fósforos.
No início de 1973 tive a felicidade de frequentar, em Luanda, uma breve formação orientada pelo professor Redinha. Nas aulas, para lá de nos enriquecer com a partilha dos seus conhecimentos sobre a classificação etnográfica dos povos de Angola, Redinha maravilhava-nos com a intensa, febril, mas metódica utilização de enormes caixas de fósforos Quinas que tinham surgido no mercado três anos antes da polémica sobre o monopólio.
Cada caixa continha cem fósforos, cem amorfos (como se dizia).
O professor Redinha deambulava pela sala, discorrendo sobre a metalurgia tradicional do ferro em Angola ou sobre ritos de passagem, enquanto fumava cachimbo. O cachimbo dele apagava-se com muita frequência, de tal modo que o professor gastava os cem fósforos durante uma aula. E nós seguíamos, como que hipnotizados, o modo como José Redinha ia dispondo os pauzinhos utilizados numa sequência de simetria irrepreensível, ao longo do tampo da mesa.
Os pauzinhos de fósforos queimados do professor José Redinha mereciam uma vitrina sentimental no incrível Museu dos Fósforos, em Tomar, lugar mágico que reúne perto de 80 mil caixas de fósforos reunidas ao longo de quase três décadas por Aquiles da Mota Lima.
Lá estão caixas de fósforos usadas como propaganda eleitoral em campanhas de Soares, Eanes, Pintasilgo, Freitas do Amaral, Vítor Constâncio, entre outros.
As campanhas ardem num fósforo. Raspa-se-nos a cabeça em lixa, ousam alguns breves pauzinhos na engrenagem, ribombam nos comícios palavras incendiárias como fósforos na palha.
Mas um fósforo, no seu tão fugaz fulgor, pode ser metáfora poderosa. Faulkner atribuiu à literatura o poder igual ao de um fósforo aceso na noite. “Um fósforo”, lembrou o autor de Palmeiras Bravas, “não ilumina quase nada, mas permite-nos ver a escuridão em redor”.