Muitos talvez não saibam, outros esqueceram-se depressa. Uns não viram, não estavam lá; outros nem terão querido saber, não os aquece nem os arrefece que tenha sido assim ou que tenha sido assado.
Este livro de Fernanda Cachão, “O Estado Novo em 101 objectos”, vem sacudir o esquecimento mais pusilânime dos da memória curta. E vem confrontar os perversos da memória táctica com a confirmação documental das pequenas misérias e das grandes afrontas de um tempo de sombras, de medos, de rédeas curtas. Vem mostrar a todos, os distraídos, os frívolos, os negligentes, a iconografia da ditadura, a montra e o armário sobre os quais assentaram a poeira e o esquecimento. E aos que sabiam e não se esqueceram, acrescenta informação valiosa, pérolas preciosas. Fernanda Cachão andou cinco anos a desbravar arquivos históricos, museus, bibliotecas, fundações, colecções particulares e reuniu as provas provadas, os documentos, os carimbos, os objectos, que sustentam a história, assumida ou subterrânea, de um tempo de sombra.
Temos neste livro 101 objectos explicados, enquadrados, em mais de 600 páginas. Esta é uma narrativa ágil, contagiante, poderosa, sobre um tempo de astenia. Dá-nos a ver e reúne, a respeito de cada objecto que mostra, o contexto necessário. Mostra-nos, por exemplo, a foto da única sessão em que Salazar posou para o escultor Francisco Franco que lhe fez o busto sob o olhar de António Ferro, o homem forte da propaganda do regime. Mostra-nos o maço de cigarros AC, o “tabaco dos soldados”, como era designado, fabricado em Angola com o carimbo das Forças Armadas, e revela os curiosos trocadilhos inspirados nas iniciais. Mostra-nos os cartazes de propaganda criados para assinalar nas escolas o 10º aniversário da ditadura, as designadas “lições de Salazar”, para meninos e meninas perfilados. Mostra-nos a Chaimite, o carro blindado da guerra colonial, copiado do catálogo norte-americano. Mostra-nos os aerogramas que traziam as saudades
dos nossos pais. Mostra-nos a primeira página do Diário da Manhã, o jornal do regime, no dia em que Américo Tomás foi em visita ao Algarve acudir às dores de um tremor de terra sobre o qual, de informação, nicles. Mostra-nos o Chrysler de Salazar no qual se evadiram de Caxias vários prisioneiros comunistas; e a carta de Lúcia que Cerejeira enviou a Salazar; e as senhas de racionamento; e o imposto dos presos (sim, havia um imposto de carceragem: no final dos anos 30, os presos pagavam pelo alojamento, a tabela ia dos 20 centavos para a enxovia aos 20 escudos para o quarto individual); o discurso do presidente Craveiro Lopes censurado por Salazar; o livro de António Botto na biblioteca do ditador; o chapéu, as botas e a bengala de Salazar; o edital sobre a moral nas praias, surgido em 1941, evocando a Constituição para legislar sobre os “vestidos de banho”; a lista dos assinantes da revista Seara Nova; o prato usado pelos presos políticos de Peniche; o cartaz das tabernas, com o elogio do vinho que dava de comer a um milhão de portugueses; a pauta do hino e a farda da Mocidade Portuguesa; o lápis da censura…
Um ensaio recentemente realizado numa universidade inglesa confirmou que pessoas expostas ao aroma do alecrim obtiveram melhores resultados em testes de memória do que outras expostas ao ar neutro. Este livro de Fernanda Cachão, “O Estado Novo em 101 objectos” tem a eficácia do alecrim em dose reforçada.
Não vos desaconselho o cheio do alecrim. Aconselho-vos vivamente o aroma destas páginas. O livro é apresentado hoje, 28 de Maio. A data diz-vos alguma coisa ou precisais de alecrim aos molhos?