Guardei há dias no bloco notas uma frase que encontrei na edição digital do jornal El Sur, de Málaga, dita por Antonio Ortiz, um especialista em padrões estocásticos: “Uma das coisas que sempre nos distinguirá da inteligência artificial é desobedecer”.
Lembrei-me dessa anotação quando chegou a notícia da morte de Maria Teresa Horta que sempre fez da desobediência uma das marcas, talvez a principal, das tantas lutas que travou. Nela, a desobediência era um degrau mais alto da coragem. Porque, nela, a coragem podia implicar que, não raras vezes, rompesse com a norma estabelecida no seu mais íntimo círculo de acção. Desobediente, pois, e desalinhada, mesmo quando fazia ombro com outros ombros no empenhamento cívico. Não era mais uma. Era uma, senhora de si, fraternal, solidária. “Comigo me desavim/ minha senhora/ de mim”, escreveu ela num livro de 1971 que a Pide haveria de apreender.
O enaltecimento desta sua marca de água ética e estética por certo merece menoscabo de tantos que na passagem dos dias nunca deixaram de beber o purgante da vassalagem, educados na continência e na serventia vil. Vemo-los compondo, no enquadramento, o galheteiro mediático, olhar circunspecto e bajulador, abanando a cabeça às declarações dos mais graduados. Têm a altivez de um cão de loiça. São insensíveis à pulsão mais funda da liberdade, estranham qualquer manifestação ou formulação de um viver poético.
Na notável biografia de Maria Teresa Horta que Patrícia Reis publicou o ano passado, justamente intitulada “A Desobediente”, é relembrado um depoimento do compositor António Chagas Rosa que em dado momento pretendeu musicar poemas originais de Maria Teresa. Ele conta que ela se lhe apresentou com aquilo que define como “a modéstia dos grandes”, e lhe entregou um esboço do magnífico conto cantado “Feiticeiras”, perguntando: “Acha bem?”.
“Sou mulher/ sou feiticeira/sou bruxa/ No meu abraço/ desobedeço e invento/ insubordino o que faço”.
São versos retomados, noutra formulação, no poema “Ponto de Honra”, incluído em “Inquietude”, uma edição da Quasi, nos finais de 2006: “Desassossego a paixão / espaço aberto nos meus braços/ Insubordino o amor/desobedeço e desfaço”.
A mulher que nos olha com tamanha doçura na belíssima foto de Gonçalo Villaverde, na capa do DN, intima-nos, tão serenamente, a que não desistamos da coragem da desobediência, quando ela se imponha não para que nos distingamos de máquinas inteligentes, mas de humanos pusilânimes.