Murilo Mendes, o poeta brasileiro que viveu longamente em Roma e está sepultado nos Prazeres, começa assim a Canção do Exílio: “Minha terra tem macieiras da Califórnia/onde cantam gaturamos de Veneza”. Foi por causa desse poema que eu fiquei a saber a verdade, a poética verdade, sobre os gaturamos de cuja existência nem sequer suspeitava. É um belo pássaro, o gaturamo, tão belo como os tantos nomes com que o baptizam. Em certos lugares chamam-lhe bonito-lindo, noutros tem-tem-de-estrela.
Mas o que me prende ao poema de Murilo é a evocação das macieiras da terra natal. Há tantas espécies de macieiras como nomes de gaturamos.
Lembro-me do cheiro intenso da maçã bravo de esmolfe nas camionetas que algumas vezes transportaram a minha infância até ao mais fundo do pinhal
Lembro-me de escutar pela primeira vez em Armamar a referência à maçã de montanha, embora os cartazes da estrada reclamassem para Carrazeda a centralidade do país das macieiras.
Tudo me prende à geometria amável dos pomares. E isso também explica que, estando os ventos alterados em tantas frentes, sendo tantos os estragos na paisagem, eu me detenha num certo parágrafo de uma notícia do JN. É como se, nessas breves linhas sobre o grande temporal, pudesse ver os gestos de José Fonseca, o produtor de Armamar, cujo pomar de macieiras foi destruído em poucas horas. José tem vários pomares. A notícia conta que o pomar de Santa Cruz “foi varrido pelo vento e chuva que, especialmente entre as 6 e as 9 da manhã, partiram milhares de árvores”. E agora, José? Ele conta pelos dedos da impotência: “Perdi cerca de duas mil macieiras”. E garante que em vinte cinco anos de produtor, nunca viu nada assim.
Era Abril, há muitos anos, quase cem, Miguel Torga sentou-se algures ali perto a ver as macieiras em flor. E deixou testemunho no primeiro volume do Diário: “Este é o poema duma macieira. / Quem quiser lê-lo, / quem quiser vê-lo, / venha olhá-lo daqui a tarde inteira”.
A notícia diz que o vento forte de ontem também derrubou castanheiros em Valpaços. “Os castanheiros da idade do mundo”, como se lhes referiu o Torga nos Novos Contos da Montanha.
Mas eu estou ainda ganhando coragem para não ser capaz de perguntar a José Fonseca o nome dado por estas bandas ao gaturamo que pousa nos galhos tristes das suas macieiras. Já nem o canto do gaturamo lhe poderá indicar o lugar do pomo de ouro.