Há sessenta anos precisos, um professor de literatura do Colégio Imaculada em Santa Fé, na Argentina, pediu a Jorge Luís Borges que fizesse um prefácio para um livro de contos escritos pelos seus alunos. Borges já tinha declarado, num dos breves contos de “O Fazedor”, que “ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas”. É esse um magnífico conto no qual o autor declara a sua rendição aos relógios de areia, aos mapas ou à tipografia do século XVIII. Já ele, Borges, caminha por Buenos Aires, demorando-se na contemplação do arco de um saguão ou de uma cancela. Borges garante não ter a certeza de qual dos dois escreve aquela página de “O Fazedor”. Um dos dois, Borges, ele mesmo, ou o outro, aquele “a quem acontecem as coisas”, aceitou, entretanto, com entusiasmo o convite do professor Bergoglio e enviou-lhe um prefácio no qual declarava que aquele livro, escrito por jovens estudantes, transcendia o seu propósito pedagógico, alcançando “intimamente, a literatura”. Passados cinco anos, Bergoglio, o outro, aquele que fazia acontecer as coisas, estava em Alcalá de Henares com os jesuítas que o escolheriam para provincial na Argentina, três décadas antes de João Paulo II o ter feito cardeal.
Os jornais de ontem traziam uma fotografia na qual o olhar do antigo professor de literatura e de teologia parecia estar já noutro lugar, talvez sob o arco de um saguão da Buenos Aires onde aprendeu de cor vários poemas de Borges. Ele tinha ido despedir-se de nós à varanda de Pedro, com os mesmos gestos que nos dirigira quando, naquele mesmo lugar nos disse, pela primeira vez, “boa noite” e nos pediu que rezássemos por ele. Tinha, então o ar de quem terminara uma sesta e abrira uma janela sobre a praça onde nos daria tantas lições de humanidade. Passado um mês, ele veio, de novo, à varanda com os seus sapatos pretos, aqueles sapatos gastos de ir ao pó dos caminhos, os sapatos de ir a Lampedusa como quem vai buscar os pais a Piemonte, e disse-nos que não nos queria adormecidos, porque “a vida dos cristãos adormecidos é triste”.
Ontem, o rabino argentino Daniel Goldman, cofiou as longas barbas num estúdio da CNN Brasil e lembrou as muitas conversas que tivera com o Papa sobre Borges, de quem Bergoglio sabia de cor vários poemas.
Deus espreita em muitos parágrafos de Borges, diria Bergoglio, o outro. Aquele olhar que parece já ausente da varanda de Pedro talvez esteja tacteando as palavras de O Fazedor: “Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo ou talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido o seu número? O problema envolve o da existência de Deus. Se Deus existe, o número é definido, porque Deus sabe quantos pássaros eu vi. Se Deus não existe, o número é indefinido, porque ninguém pode fazer a conta. Nesse caso vi menos de dez pássaros (digamos) e mais de um, mas não vi nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três ou dois pássaros. Vi um número entre dez e um, que não é nove, oito, sete, seis, cinco, etc. esse número inteiro é inconcebível; ergo, Deus existe.”
Agora, Borges, o outro, abre as portas da grande biblioteca a Francisco. Sentemo-nos acolá. Conta-me: quantos pássaros viste?