Vou guardar durante muito tempo a imagem de Pep Guardiola enfrentando os cânticos dos adeptos do Liverpool. Gritam-lhe que será despedido na manhã seguinte, ele sacode as feridas de seis derrotas em sete jogos e ergue para os seus carrascos de ocasião as mãos ambas: os cinco dedos de uma e o indicador de outra. Ergue no relvado de Anfield seis dedos e nisso não expressa uma contricção, mas o orgulho de ter triunfado em seis campeonatos da Premier League, cumprindo o destino que, há muitos anos, Kryuff lhe traçara.
Guardiola escreve com os dedos ao alto o número 6 em pleno campo de batalha, sacudindo o peso de uma nova derrota.
Os numerologistas explicam que o seis é o algarismo do equilíbrio e da harmonia, da tolerância e da inteligência. Um abracadabra para chegar ao topo do mundo. Mas essas não são as suas contas.
Guardiola já está no topo do mundo, sacudindo o pó da batalha. Talvez ele (que na Alemanha chegou a recitar aos jogadores do Bayern poemas do seu compatriota Miquel Martí i Pol) procure agora um verso secreto, um tiki-taka cantante, o poema que se ajuste à sua solidão. “Enquanto puderes, não desperdices a tua solidão / dedicando-a a uma absurda busca do nada/ nem te persigas obsessivamente por escuros corredores”.
É aquele poema de Miquel Martí i Pol que o desafia a olhar as coisas difíceis. “Considera que o jogo desmedido das palavras / não te servirá de nada / se não te apoiares naquilo que te rodeia”.
Guardiola, em Anfield, está rodeado por cânticos adversos e por seis dedos das suas mãos ambas ao alto.
Não consigo lembrar-me do contexto em que já não sei quem explicava que precisamos de seis contactos para chegarmos a qualquer pessoa do mundo. Se eu soubesse de quem soubesse de quem soubesse de quem soubesse de quem soubesse como chegar a Bernardo Silva lhe pediria que fizesse chegar a Guardiola, ao semideus do futebol e amante de poesia agora ferido em combate, uns versos de um poeta português que ele talvez não conheça, um sereno poeta discreto como Messi, mas sabedor de magias que escapam aos numerologistas. Chama-se Jaime Rocha, andou pelos jornais com o nome limpo e honrado de Rui Ferreira e Sousa. E são dele estes versos, estes versos finais de um poema que aqui deixo ao cuidado de quem os pudesse levar a Guardiola: “Ah se tivéssemos seis dedos eramos/ capazes de voar. / Seis dedos em cada mão, apenas seis dedos / para abraçar a terra”.