O grande compositor e poeta repentista Patativa do Assaré, cinco vezes doutor honoris causa, capaz de aliar a mais rústica voz do Ceará às regras do soneto clássico, sabia de pragas e do modo de as rogar. Certa vez, percebendo que vizinhos não identificados lhe roubavam do quintal sucessivas varas de feijão, compôs um poema que lançava sobre eles mais pragas do que as do livro do Êxodo sobre o Egipto. Roubo, para dar algum sabor à crónica, uma breve passagem do poema “Rogando Pragas”, de Patativa: “O santo Deus de Moisés/lhe mande bexiga roxa/ saia carbúnculo na coxa/cravo na sola dos pés/ sofra os incómodos cruéis/ da doença hidropsia/ icterícia e anemia/ tuberculose e diarreia/ e a lepra da morféia/ seja a sua companhia./ Deus lhe dê reumatismo/ com a sinusite crónica/ a sezão, o impaludismo/ e os ataques da bubónica/ além de quatro picadas/ de quatro cobras danadas/cada qual a mais cruel/de veneno fatal/ a urutu, a coral/ jararaca e cascavel”.
A rogação é um vasto lençol de pragas, nuvem de gafanhotos verbais, rãs cobrindo a terra como vírgulas. Contudo, mais assustador do que um lançador de pragas contra a saúde alheia é o aparecimento de uma praga numa qualquer instituição dedicada ao cuidado da saúde pública. A praga de ratos que levou, por duas vezes, ao encerramento do Centro de Saúde de São Martinho do Bispo, encosta-nos mais à parede do que as rimas de Patativa, consegue roer muito mais do que a rolha da garrafa do rei da Rússia.
Uma praga de ratos num Centro de Saúde? Aqui há gato. Por mais que nos prometa, a notícia, uma desinfestação, instala-se o estribilho de uma velha canção do Sérgio: “Tem ratos/ tem ratos/ vivem escondidos/ nos nossos sapatos”.
Certas estratégias de alegado combate a pragas são, em si mesmas, calamitosas, pestíferas. Como combatê-las? Há dias, um superintendente da PSP foi chamado a uma comissão do parlamento regional dos Açores. Pediram-lhe que se pronunciasse sobre uma proposta apresentada por cinco deputados do Chega no arquipélago visando a permissão da caça aos ratos e às rolas com armas de fogo, de modo a combater as pragas que afectam as culturas agrícolas. O comandante da polícia dos Açores considerou a proposta “muito perigosa” e lembrou que ela viola o estabelecido na lei.
Há, na verdade, um abismo entre a caça e o combate às pragas. Algumas escapam, aliás, a todas as técnicas de desinfestação. Este fim de semana, em vésperas do jogo entre o Fabril e o Barreirense, para a série D do Campeonato de Portugal, alguém colocou uma tarja na parede do estádio Alfredo da Silva com os dizeres “Esperamos vocês ratos brancos”. As pragas tomam formas diversas, ora de bicho, ora de palavra, ora de piolho, ora de pensamento maléfico.
Mas um centro de saúde ameaçado por praga de ratos, sendo assustador em si mesmo, ao ponto de obrigar ao encerramento do centro, é também metáfora de outros perigos.
O caso de São Martinho do Bispo sugere, talvez, uma pergunta estranha: haverá um flautista disponível no mercado, um flautista como aquele saído do conto dos irmãos Grimm, capaz de conduzir a praga para a margem de lá da ponte de Negrelos?