Ontem, lida no Público a magnífica entrevista de Sérgio C. Andrade a José Manuel de Oliveira, conservador da Casa de Camilo, anotei como tarefa prioritária a encomenda das mais de 600 páginas de “Vivências de Camilo Castelo Branco a Partir da sua Correspondência” ao livreiro e camilianista Edgar Santos, presumivelmente regressado de São Miguel de Seide à sua Almedina do Rato. Depois entreguei-me à deliciada releitura d’“A Queda de um Anjo” (que o autor dedicou a Rodrigues Sampaio, etiquetando-a na categoria das “bagatelas”) e dei comigo a pensar no quanto a figura de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda maquilhou os modos, desde então.
Encontrados os Passos Perdidos, os Calistos de hoje já não se obrigam a tosquenejar as noites sobre os “bacamartes pulvéreos”, nem soltam impropérios contra Lucrécia Bórgia, à saída do teatro (quando vão ao teatro, se é que vão).
Os Calistos Elói de hoje iniciam as frases pelo infinitivo (“Dizer ainda que… Saudar, antes de mais, quem nos escuta”). Já não pescam no latim, tiktokam a esmo um vocabulário sem étimo.
Ao partirem para a capital, não mandam, “adiante, por almocreves, duas cargas de livros”, nem “uma carga de ancoretas de vinho velho”. Os Calistos de hoje estreiam-se num canal de notícias, logo tratados pelo nome próprio, sem morgadio.
A primeira intervenção parlamentar de Calisto Elói provocou “hiperbólico estrondo”. Os Calistos de hoje passam a legislatura em discreto silêncio, aplaudindo, aplaudindo.
Camilo delicia-nos com a descrição de um homem cuja “sensível e dissimétrica saliência do abdómen” resultava do “uso destemperado da carne de porco e outros alimentos intumescentes”. Já a inclinação do tronco denunciaria “o arqueamento da espinha por efeito da incansável leitura e minguado exercício”. Mas é no traje do barão que Camilo detecta o desaire: “Calisto Elói vestia de briche da Golegã e dos alfaiates de Miranda”. Até Camilo desconhecia a razão “porque o morgado de Agra se afeiçoara às calças rematando em polainas abotoadas de madrepérola” que em Lisboa provocaram “razoável impressão no espírito observador dos gaiatos”.
Já não se distingue, nos dias de hoje, o figurão de seus confrades de bancada, sequer na fatiota. Ou terá sido o espírito observador dos gaiatos que, tão preso ao fascínio dos ecrãs, deixou de se impressionar com a estética dos Calistos?
“A Queda de um Anjo” é, o próprio autor o anuncia, uma história de corrupção. Talvez isso te aguce a curiosidade, leitor bissexto que de Camilo te possas ter perdido. Tens uma campanha à porta. O anjo cairá?