Gosto de descer a rua Nova de Castelo de Vide na companhia do meu amigo Carolino Tapadejo. O guardião da memória e da identidade da Terra Alta, como lhe chamou João António Gordo, cujo nome retenho da toponímia local, pode facilmente comover-se nessa lenta descida até à Fonte da Vila. Aquela é, como Carolino gosta de lembrar, a rua dos seus antepassados. No século XVI havia, nesta rua Nova, 12 oficinas de ferreiro. Cinco ainda chegaram ao século XX, uma delas a oficina do pai do meu amigo, valoroso artesão do ferro forjado que ainda tive a alegria de entrevistar. A arte do ferro é celebrada na oficina-museu Mestre Carolino que ali pode ser visitada. Uns passos adiante encontramos a Casa da Inquisição, um recente espaço de interpretação da actividade do Santo Ofício e de homenagem às suas vítimas. Lá dentro, a figura do Visitador é uma réplica impressionante do notável autarca que colocou no mapa a terra de Garcia de Orta. Chegados à Fonte da Vila pomos as mãos em concha na bica de água fresca onde Saramago se dessedentou depois de percorrer a vila guiado por Tapadejo, sábio intérprete das inscrições na pedra mais antiga.
E havemos de subir ao castelo, entrando na Casa da Cidadania, admirável evocação de Salgueiro Maia, amigo e cúmplice do meu admirável anfitrião. Foi ele que me levou pela primeira vez à Penha e ao menir da meada. Foi ele que me explicou o sentido preciso que dão, em Castelo de Vide à palavra anexim, modo festivo de localmente dizer alcunha. Em Castelo de Vide fazem, ao longo do ano, festas que juntam os convivas pelos nomes. Há uma para os nomes mais estranhos, lá está Carolino, lá poderia estar António Repenicado cuja vida ligada a jornais locais a toponímia regista.
Carolino Tapadejo foi um dos mais bravos autarcas que conheci, entusiasta dos valores que fundam a própria ideia de município. Bem me lembro da coragem com que barrou projectos de introdução do eucalipto e da convicção com que defendia, antes de muitos, a ideia de sustentabilidade. E da alegria com que resgatou do abandono a velha sinagoga medieval, um espaço musealizado que reabilita a memória sefardita de Castelo de Vide. Quando abandonou as funções de autarca não calçou pantufas, escolheu bandeiras importantes do serviço à comunidade. E assim foi organizando visitas guiadas à vila cujas cerimónias da Semana Santa são incomparáveis, com o seu sábado de chocalhos e a sua procissão dos estandartes lembrando o esplendor dos antigos ofícios.
Carolino Tapadejo conduz regularmente desde 1987 pelas ruas da sua Castelo de Vide os visitantes e essa é uma actividade que desenvolve pro bono. Tem essa tarefa tão documentada, tão comprovadamente registada, que na arrumação de papéis dos primeiros dias do ano chegou a um número que partilhou com os amigos. “Entre 1987 e 2 de janeiro de 2025 efectuei 2222 visitas guiadas a Castelo de Vide”.
Quando li esta mensagem enviada pelo homem que me deu a provar, feito por ele, o primeiro licor de bolota da minha vida, enviei-lhe duas palavras de reconhecimento. Respondeu-me que era o seu modo de agradecer a Castelo de Vide o facto de ter podido participar no Poder Local Democrático.
Já não nos livramos de uma carrada de abaladiças no próximo encontro em Castelo de Vide.