A fachada do Palácio de São Cristóvão voltou a mostrar-se como outrora, bela e imponente, (re)inaugurada em setembro de 2022, por alturas do assinalar dos 200 anos da independência do Brasil. Situado numa elevação com vista sobre a Baía de Guanabara, o edifício que foi paço real quando a corte de D. João VI viveu no Rio de Janeiro e, depois, serviu de residência oficial aos dois imperadores do Brasil, este velho edifício foi em grande parte destruído pelo incêndio que ali deflagrou a 2 de setembro de 2018, levando também as chamas parte do acervo do Museu Nacional, ali instalado há já mais de cem anos. A Antena 1 passou pela Quinta da Boa Vista, onde o palácio foi construído, entrou no estaleiro das obras de reconstrução, contemplou a fachada restaurada e uma primeira nova exposição de mineralogia que está patente no vestíbulo do edifício. Nessa mesma data aqueles que trabalhavam nas obras festejavam, com um churrasco, a conclusão desta etapa de recuperação, seguindo-se outras mais num plano que prevê a reabertura total em 2027. Acompanhados pela arquiteta Maria Paula Van Biene, que chefia o escritório técnico do Museu Nacional e fez a sua tese de doutoramento sobre o palácio, fizemos uma visita guiada não apenas ao edifício em obras mas também à sua história.
Começámos por viajar no tempo, até ao século XVIII, quando as terras onde foi implantado o palácio pertenciam à Companhia de Jesus. A quinta foi loteada após a sua expulsão e foi arrematada por um comerciante que ali faz as suas casas, cedendo uma delas à família real, quando D. João, ainda príncipe regente, sai de Lisboa perante a ameaça das tropas de Napoleão e instala a corte no Rio de Janeiro. Quem ali começa por viver é a rainha D. Maria I, já que só depois da sua morte, em 1816, é que D. João VI toma aquela como a sua residência. “O que encontramos hoje é fruto de uma evolução arquitetónica bastante regular”, explica Maria Paula Van Biene, que continua: “O corpo central está a origem do palácio, que vai sendo acrescido por módulos e andares ao longo do tempo”. O que vemos atualmente, todavia, tem mais a ver com uma grande reforma ocorrida durante o reinado de D. Pedro II. Com a proclamação da república e o exílio da família real é feito um leilão do recheio do palácio, na verdade incluindo também “bens da família que estavam na Fazenda de Imperial Santa Cruz e do próprio Paço da Cidade, que ficou como sede oficial do governo”, recorda a arquiteta, que conta ainda que “amigos da família imperial arremataram vários bens”, pelo que hoje alguns deles integram peças de museus, sobretudo no Museu Imperial, em Petrópolis. O palácio foi esvaziado e num pátio interior é construído um plenário onde é votada a nova constituição. O Museu Nacional, que tem as suas origens no tempo de D. João VI, tendo sido criado como Museu Real em 1818, acompanhou a história do país e acabou por tomar como sede o velho palácio, o que comporta o conjunto de novas intervenções, atingindo-se a configuração atual em 1910.
Entrámos então no edifício, visitando primeiro o pátio onde pontualmente existiu o plenário onde foi votada a constituição da república e avançámos até à base da antiga escadaria que dominava a entrada do palácio. Há naquelas paredes, apesar das modificações que surgiram com a adaptação a museu, ecos do que foram, outrora, “a ala dos aposentos particulares, a sala do trono, a sala dos embaixadores, as salas de aparato”, notando a arquiteta afinidades com a conceção os palácios portugueses. “No rés do chão há uma tipologia de salas menos nobres e mais utilitárias”, seguindo-se um piso nobre, com um pé direito de sete metros de altura “onde ficavam os salões oficiais, que ocupavam a parte frontal do edifício”. No período imperial crescem blocos laterais com áreas residenciais e os dois torreões, o segundo terminado já sob D. Pedro II, que completa também o terceiro piso, onde ficaram instaladas a biblioteca e as coleções privadas do imperador, entre as quais estavam os minerais recolhidos pela sua mãe, D. Leopoldina. A coleção de fotografias que ali foi reunida está hoje no Museu Imperial, em Petrópolis. E já neste tempo notava-se, na própria residência imperial, um gosto em guardar coleções, sobretudo dedicadas às ciências e à arqueologia.
O incêndio devastou quase todos estes espaços. Maria Paula Van Biene lembra-se de receber mensagens a meio da noite e de, como tantos outros colegas, se ter dirigido para o museu, em chamas. “O palácio tinha muita madeira e o acervo era bem inflamável”, recorda. Houve quem conseguisse entrar para salvar algumas coisas, mas “foi basicamente testemunhar o fogo consumindo quase todo o palácio de forma descontrolada”, acrescenta. Foi “uma catástrofe”. No dia seguinte todos os que ali trabalhavam estavam ali, mobilizados, para começar a recuperar o espaço e as coleções. “Mas por conta da mobilização e das manifestações tanto da população como de instituições de todo o mundo” rapidamente sentiram que o museu estava “vivo e não em luto”. Iniciadas as primeiras obras de emergência, avançaram operações de resgate fazendo “arqueologia de escombros”. Depois entraram os restauradores para proteger os ornamentos, depois recuperar a fachada, havendo novas campanhas em curso, ao mesmo tempo que se está a enriquecer novamente o acervo do museu.
Quatro anos depois a fachada do velho palácio reabriu para a população, com a exposição de mineralogia onde vemos acerco regatado. Ao mesmo tempo estão ali as estátuas originais da fachada, assim como uma história contada de todo aquele espaço.
Texto de Nuno Galopim
Ouça abaixo, em quatro partes, a reportagem da Antena 1 no Palácio de São Cristóvão. Todos os episódios de Histórias e Lugares do Brasil, da rádio online Brasil 200, estão disponíveis na RTP Play.