Nos tempos mais sombrios da pandemia, cujo nome não demos mais pronunciar, esta foi a minha música. “Apesar de Você” (dele, o bicho) amanhã teria mesmo de ser outro dia. Mesmo que esse dia inicial inteiro e limpo não estivesse marcado exatamente para amanhã. Do lado de cá do Atlântico escrevera (e cantara) em tempos Sérgio Godinho que “a sede de uma espera só se estanca na torrente” e eram esses tempos com que sonhava: uma enorme euforia sem que ninguém pudesse proibir se o galo insistisse em cantar.
São assim as canções. Vão e voltam ganhando novos e tão diferentes horizontes. No tal mundo feito de mudança cá estava uma canção de Chico Buarque a tomar sempre novas qualidades.
Mas a verdade, é que no Brasil de 1970 (data da edição primeira do tema) a doença era outra e não havia vacina no horizonte. Nos anos de chumbo da ditadura militar, o génio de Chico Buarque de Holanda disfarçou de arrufo de namorados uma canção com mensagem política óbvia. Talvez uma outra euforia tão brasileira (o Brasil acabara de se sagrar novamente campeão mundial de futebol) tenha anestesiado a censura que não só se deixou, literalmente, levar na cantiga como demorou mais de meio ano a perceber o real significado da canção e o seu forte impacto já que pouco depois do lançamento o tema já tinha vendido cem mil cópias e ouvia-se em todas as rádios do país. Escapando, no fase inicial, ao lápis azul (e amarelo?), o tema acabaria mesmo por ser proibido não sem antes ter tido uma nova versão gravada por Clara Nunes também ela convencida que estava a gravar uma inocente canção de amor ou, melhor dizendo, sobre a falta de amor.
Chico ainda teria de esperar década e meia para poder cobrar todo o sofrimento com os devidos juros. Só em 85 acabaria o samba no escuro e finalmente a tristeza seria desinventada.