Texto: Nuno Galopim em São Paulo
Quando, há menos de duas semanas, os termómetros registaram em São Paulo uma temperatura mínima de menos um (um recorde), poucos imaginariam que o inverno aqui desse tão rápida trégua aos casacos e cachecóis. E foi em autêntico clima de verão, com temperaturas na casa dos 30 e noites daquelas que não pedem manga comprida que o Coala encerrou a sua décima edição, num serão que incluiu um verdadeiro festim popular (e dançante) no encontro entre Timbalada e Afrocidade e a já esperada aclamação em palco dos Planet Hemp.
Ao ver o décimo Coala a fechar a edição com um aviso de “esgotado” publicado nas redes sociais e com o Memorial da América Latina de facto repleto de uma ordeira multidão, Gabriel Andrade, fundador do festival, sorria satisfeito. Olhando para trás, num balanço sobre dez anos de história, reconhece: “Eu falo que é quase um milagre, porque o mercado brasileiro é muito concorrido, tem muita coisa acontecendo”, notando que “a gente é uma estrutura independente e conseguir chegar e fazer dez edições é uma coisa que jamais esperaria quando criámos o festival”. O Coala, explicou à Antena 1, “nunca foi pensado para ser desse tamanho. É uma consequência do trabalho, da cultura, de todas as mudanças que aconteceram com a música brasileira como um todo. E a gente cresceu juntos. Então eu lembro a primeira edição, olho para esta e é uma coisa maluca… Mas durante este período a gente foi tomando o gosto pela coisa. Então a gente se desafia sempre. Todos os anos mudamos as plantas, mudamos o palco. Mudar no sentido de melhorar. Também era um sonho o de se internacionalizar. Então a ida para Portugal [em 2024] foi um sonho e uma conquista gigantesca. E estamos muito felizes de a gente levar o nosso jeito de fazer eventos para Portugal. E espero que tenha sucesso lá e que não seja uma coisa só restrita a Portugal e vire também uma referência para outras pessoas na Europa poderem consumir música feita em língua portuguesa que eu acho que essa é a nossa missão lá”.
Nem tudo corre sempre bem, observou ainda, recordando ora o apagão de alguns minutos durante um concerto de Maria Bethânia em 2022 ou, já este ano, com a queda do maestro Arthur Verocai que obrigou ao cancelamento do espetáculo. Mas, como o próprio Gabriel reconheceu, estes “momentos tensos” fazem também parte da história de um festival. Curiosamente, ao ser questionado como momentos históricos dos primeiros dez anos do Coala, o seu fundador aponta estes dois momentos entre outros de espetáculos que ficaram na memória, como “o último show da Gal Costa, o do Milton em 2018 com o Criolo, o Caetano em 2017…”.
Sobre a identidade de um festival que cruza géneros e gerações da música brasileira e tem já por hábito provocar encontros inesperados – como este ano aconteceu entre Arnaldo Antunes e Adriana Calcanhotto ou com Criolo e Tulipa Ruiz – Gabriel Andrade observa: “a gente conhece os artistas, trabalha com eles há muito tempo. E há coisas que só rolam no Coala porque tem essa personalidade. E a curadoria também tem personalidade. Tem um pouco do nosso gosto pessoal ali imprimido. Em grandes empresas há menos feelings e mais dados. E aqui é feeling puro”. E a curadoria, reforça, “tem essa coisa de ver coisas que estão fora do radar. E as pessoas vêem e… wow… Conhecem uma coisa nova que às vezes é lado B, C, D… A minha maior satisfação pessoal é nos shows mais lado B, C, D. E as coisa dos encontros é isso. É uma coisa que conseguimos construir com o tempo e os artistas gostam. Não são encontrados aleatórios. Sempre tem nexo… E a gente grava tudo. Sempre em áudio e, neste ano, em vídeo também. E se rolar uma coisa maravilhosa a gente lança”. Aliás, estão nas plataformas de streaming compilações com momentos selecionados das duas edições anteriores, sendo seguro afirmar que o mesmo acontecerá brevemente com a deste ano. De resto, “a primeira ideia para ter um selo [a Coala Records, que entretanto editou nomes como Zé Ibarra, Rubel, Bala Desejo, o Terno ou Bruno Berle e, brevemente, Dora Morelenbaum] foi para a gente lançar as coisas que a gente gravava no festival”.
Sobre a ida para Portugal, com uma segunda edição já marcada para 31 de maio e 1 de junho, em Cascais, Gabriel comenta que “a nossa primeira vez lá foi muito bem” e notou diferenças entre as operações nos dois países: “Tem algumas particularidades, coisas diferentes. A operação de praça da alimentação é uma coisa que a gente precisa de melhorar lá. Comunicação também achei que poderia mais pessoas saberem. E a curva de venda lá é diferente do Brasil. São coisas técnicas de produção. O palco eletrónico lá foi uma coisa incrível. E no ano que vem vai ser expandida. Houve pessoas que ficaram só lá porque a curadoria do Kalaf foi brilhante. E de resto é acertar curadoria. Queremos fazer coisas grandes da cultura portuguesa. Esse ano teve Carminho. E aí é sempre fazer um balanço de coisas grandes do Brasil, de África, de Portugal”.
Kalaf Epalanga, curador na edição portuguesa e também responsável por uma jornada de música eletrónica pela Enchufada no Palco Clube este domingo, concorda com este retrato de um bom arranque para o Coala em Portugal: “Deu muito certo. Eles gostaram da proposta que a gente fez no clube. Não há muito uma cultura de clube no Brasil. E sentiram que aquilo que propusemos é o reflexo dessa música urbana, que já tem uns dez ou 15 anos em Lisboa, e que tem vindo a arriscar, a trazer inovação, novas propostas musicais que acho que casam com este festival. O Coala gosta de provocar o público. Sei que ainda há muito caminho a andar, muita coisa a fazer para a cultura de clube funcionar. Mas é insistir, insistir…”, explica à Antena 1. Kalaf sabe que a produção ficou espantada com a adesão à zona eletrónica em Cascais, como há pouco referia Gabriel Andrade: “Sou suspeito a falar disso, porque a música eletrónica é a base do que a Enchufada faz. Mas sinto que há muita troca a fazer com o Brasil. Há uma cultura de clube presente, e estou a falar do baile funk, mas tem outra dinâmica, outro circuito e outro público. Circula e acontece na periferia das grandes capitais. Mas acho que há espaço. Só não há uma proposta consistente a apresentar esses nomes. Esta foi a nossa provocação e eles aceitaram. Vamos ver se funciona”.
Sobre as características de um festival que nasceu e cresceu num clima independente e hoje tem esta dimensão, Kalaf explica que aprendeu “no Brasil esta ideia do midstream”. Ele mesmo explica: “Tens o underground, tens o mainstream e depois o midstream. É o universo que circula no meio e que por vezes parece enteado dos grandes eventos culturais. E o Coala aposta exatamente nessa fatia de mercado. São aquele tipo de músicos que abrem os palcos e nunca são o headliner de alguma coisa… Aqui há por um lado a ideia de trazer nomes consagrados. Aliás até mesmo consagrados que já não estão a ter os espaços que deveriam estar a ter e aqui são celebrados e colocados num lugar de destaque. Mas Portugal tem festivais desse género, como o Festival F, o Sumol ou o Sol da Caparica… Dão espaço aquelas músicas que estão no meio da tabela, a competir com os grandes nomes consagrados da pop, mas que depois, quando estão no seu palco num lugar de destaque, conseguem arrastar também multidões. E ter um festival internacional a querer se fixar em Portugal e abrir pontes… Eu acho que isso não aconteceu ainda, mas o que o Coala vai fazer, sem dúvida, é começar, com artistas que estão a fazer palcos em Cascais, trazê-los para São Paulo também”.
Além do tempo para balanços, o dia de encerramento cativou gente para o Palco Club com a curadoria da Enchufada com, além do próprio Kalaf Epalanga, a dupla Aisha Mbikila e Yaminah Mello, Shaka Lion, Klap e Danykas DJ, esta última a sublinhar a ponte entre Portugal e Cabo Verde que ali representava. Neste domingo o Coala abriu com mais um encontro, desta vez com Mariana Aydar e Mestrinho e logo depois, levou a palco a quase estreante Joyce Alane, que acaba de editar um primeiro álbum, de título “Tudo É Minha Culpa”. “Para mim é uma responsabilidade enorme”, falou à Antena 1 sobre o facto de ter sido convidada para atuar no palco principal. E não escondeu: “Eu estava nervosa e ver a galera agitando foi muito massa [sinónimo de algo muito positivo]. Eu estava aqui à uma e vinte da tarde, com um sol escaldante. Mas o pessoal veio para escutar a galera está atenta à música brasileira. Então vejo o pessoal valorizando a arte, chegando cedo para prestigiar. É uma alegria muito grande”.
Mais adiante, antes de um reencontro dos 5 A Seco com os palcos e de uma atuação, já de noite, de Yago Oproprio, quem mobilizou atenções e levou todo o Coala a cantar em uníssono foi Xande de Pilares, dado a conhecer quando integrava o Grupo Revelação e que a São Paulo trouxe as canções do álbum “Xande Canta Caetano” editado em 2023. “É muito louco isso”, sorriu ao explicar como cresceu a ouvir e admirar o músico que agora canta: “Você cresce com o teu ídolo. Aí conhece o teu ídolo… Senta com ele e canta as canções dele… Então o primeiro cuidado que tenho é respeito. E depois é como aquilo de cuidar o filho da vizinha que ela deixa à sua responsabilidade para você tratar com carinho. E a obra do Caetano é assim que eu trato: com respeito e com carinho. No disco ele participou. Ele supervisionou o disco inteiro. Eu perguntava se ele achava que estava exagerado. E ele dizia que estava tudo bem, tudo beleza. E aí eu coloquei um pouco da minha musicalidade dentro da obra dele. E estou a divertir-me muito com as oportunidades que estou ganhando de participar em festivais que eu nunca imaginei que poderia entrar. Então eu acho que a maneira como estou conduzindo esse trabalho está sendo muito bacana para mim”. Convenhamos que, para quem estava ali, naquela quente tarde de domingo, foi “bacana” também.