Mais 3 discos remasterizados de Zeca Afonso são editados esta semana pela Orfeu: "Traz Outro Amigo Também", "Cantigas do Maio" e "Eu Vou ser como a Toupeira".
São discos Antena 1!
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Traz Outro Amigo Também (1970)
Edição remasterizada a 24bits a partir dos masters originais.
Inclui textos exclusivos da autoria de Gonçalo Frota e Tiago Cavaco (Lacraus, Tiago Guillul)
1 – Traz outro amigo também 3"56"
2 – Maria Faia 3"10"
3 – Canto moço 2"00"
4 – Epígrafe para a arte de furtar 2"04"
5 – Moda do Entrudo 1"59"
6 – Os Eunucos (no Reino da Etiópia) 1"54"
7 – Avenida de Angola 4"17"
8 – Canção do desterro (Emigrantes) 2"22"
9 – Verdes são os campos 2"17"
10 – Carta a Miguel Djéje 2"25"
11 – Cantiga do monte 2"25"
"A palavra à tona (em Londres)
Estavam prontos para partir. José Afonso, Carlos Correia (Bóris) e Luís Filipe Sousa Colaço, sentados, a bordo de um avião para Londres onde eram esperados nos míticos estúdios da Pye Records. O nervoso miudinho na espera pela contagem decrescente para a descolagem. Havia um disco novo para ser gravado a três, Zeca regressando a um modelo em que a sua voz aparecia acompanhada apenas pelas cordas de uma viola.
Duas, na verdade. A voz ao meio, uma viola de cada lado a ampará-la. Estavam prontos para partir. Até que soa o alarme e a PIDE irrompe pelo avião, levando consigo Colaço.
Zeca e Bóris seguem para Londres, o viola – angolano de nascimento – é despachado para a António Maria Cardoso. "A PIDE suspeitava que eu ia desertar do exército português e que era do MPLA", lembra o músico, que seria interrogado durante quase dois dias. "Claro que eu era tudo isso", conta.
Mas Sousa Colaço acabaria por embarcar dois dias depois. Porque embora fosse "tudo isso", era mais ainda. Era um ex-estudante de Coimbra – onde conhecera Zeca; mais importante ainda, era autor de um programa no Rádio Clube Português (RCP). Daí que para a sua libertação, entra em campo o presidente do RCP, Botelho Moniz, com a justificação bem urdida de que Colaço, que delírio!, não seguia para Londres com o intuito de acompanhar Zeca, mas sim para levar a cabo uma série de reportagens radiofónicas sobre Beatles, Rolling Stones, Cliff Richard e outros que tais, à boleia de um festival que,
numa feliz coincidência, decorria na mesma altura nos arredores da capital inglesa. O RCP garantiu que a viagem "não tinha nada que ver com política" e que Colaço era um simples "profissional da rádio e da música". A PIDE acabou por autorizar a sua saída do país. Colaço retrocedeu então na sua intenção inicial de já não voltar a Portugal. "Por consideração pelas pessoas que fizeram isso e para não deixar ficar mal o Zeca e o Bóris tomei a decisão de regressar". E voltou, portanto, a Portugal. Mas antes de voltar… foi. E ficou – em Londres, durante um mês. Esta é a história de ter ficado.
Quando finalmente desembarcou em Londres, as únicas gravações que Luís Filipe Colaço pretendia empreender diziam respeito a colocar a sua viola no terceiro álbum de José Afonso para a Orfeu e não a qualquer reportagem radiofónica. Seguiu de imediato para o Buckingham Palace Hotel, perto de Victoria Station, e daí para o estúdio. A PIDE, na verdade, conseguira apenas roubar-lhes dois dias de trabalho – depois de já antes ter obrigado à chamada de Carlos Correia para o lugar de Rui Pato, a quem caçara o passaporte por punição do seu envolvimento na Associação de Estudantes da Universidade de Coimbra aquando da eclosão da crise académica de 1969. Pato ficou em Portugal, com o curso suspenso e a braços com uma complicada fase de angústia – "já não tinha paciência e queria lá saber das músicas, foi o Adriano [Correia de Oliviera] quem depois me puxou" – e foi chamado aquele cujo nome de guerra quando de guitarra em punho era, enigmaticamente, Bóris.
Colaço e Bóris tinham tocado juntos nos Álamos, formação de ié-ié marcante nos anos 60 portugueses, gente que começara a tocar como prolongamento da idolatria apontada na direcção de Dick Rivers et les Chats Sauvages ou Les Chaussetes Noires e aos poucos fora tomada pelo amor aos Beatles e, algumas canções depois, absorvera os Jefferson Airplane. Era a música que ouviam no programa Em Órbita e que o próprio Colaço divulgava no seu programa Escala 12 – onde, atirando areia para os olhos do censor oficial, "passava os discos do Zeca dizendo que ia passar o senhor Afonso dos Santos".
A formação manteve-se durante o percurso universitário e ajudou a pagar as despesas do curso dos seus elementos, prolongando-se um pouco mais, até 1969, quando Carlos Correia – hoje um reputado académico ligado ao aparecimento dos primeiros computadores portugueses -, ligeiramente mais novo, já passara a integrá-la.
"O Zeca sabia o tipo de música que fazíamos nos Álamos, éramos pouco rockeiros, éramos muito mais fortes em termos de arranjos vocais", diz Sousa Colaço imaginando-se na pele de Zeca Afonso escolhendo os seus parceiros londrinos. "Ele via que não fazíamos música comercial, embora tivéssemos tocado em bailes da faculdade e queimas das fitas".
Não é por acaso – nunca o foi – que Zeca Afonso surge em Traz Outro Amigo Também dispensando outra instrumentação que não a viola. Há uma economia de meios na primeira gravação do músico no estrangeiro pelo que isso implica de controlo de custos, mas igualmente um peso político que faz pender para a palavra o foco de atenção do álbum.
Sousa Colaço fala inclusivamente de todo o disco se construir em torno do tema título – "foi muito bem escolhida como música principal". A toada política do álbum, garante Colaço, traz camuflada, por exemplo, "uma música sobre a prostituição na Avenida de Angola, a maior avenida de Maputo". "Vinham indivíduos da África do Sul, que não podiam estar com prostitutas negras por causa do Apartheid, propositadamente à procura de sexo étnico em
Maputo. É uma crítica muito forte para quem conhecia Maputo na altura, uma canção de muita força – como, aliás, todas neste disco". Em contra-corrente, Zeca afirmaria nesse mesmo ano ao Comércio do Funchal: "Se a canção de protesto pretende directa e concretamente atingir uma dada estrutura político-social num dado momento histórico com referência a factos, indivíduos e lugares, então eu não sou um cantor de protesto. As minhas canções são predominantemente líricas. Mas elas pretendem opor-se (quer as líricas quer as intencionais) a padrões de vida, gostos e predilecções vigentes entre nós.
Chamemos-lhes canções de réplica".
Devido ao estrangulamento de movimentos de Zeca em Portugal, o reportório de Traz Outro Amigo Também segue na bagagem do músico mas é quase desconhecido dos outros dois. O Buckingham Palace Hotel torna-se então a sala de ensaios fora de horas.
"Os ensaios eram quase todos no quarto de hotel", recorda Colaço. "No meu, no do Zeca ou no do Carlos Correia". "Nos corredores alcatifados do hotel", recorda por sua vez Bóris no catálogo da exposição Desta Canção que Apeteço, "o Zeca colocava a sua energia em demonstrações amigáveis de judo (modalidade que abraçara recentemente)".
O primor dos dois instrumentistas facilitaria as sessões de gravação, ajudadas por uma multiplicação de soluções técnicas, como a sobreposição de várias vozes do cantor ou de várias guitarras de Bóris. A auxiliá-los tinham um técnico de som inglês, cujo nome as fichas técnicas e as memórias não retiveram, mas que, sem saber uma palavra de português, estava perfeitamente sintonizado com o alcance e a intensidade das palavras.
"Eu percebo o que aquele senhor está a dizer sem entender português", confessou ao grupo. E como prova do que dizia, lembra Colaço, mostrava-lhes os pêlos dos braços em sentido, levantados pela emoção de ouvir a voz de Zeca. Mas não era ele, o técnico, quem gritava "mete aí uma sétima aumentada!". Apesar da distância, havia quem, como em Portugal, aparecesse para assistir às gravações.
Como sempre acontecia em tempos de Estado Novo, havia contactos portugueses em Londres como noutras capitais europeias. Em Londres, foi pelos passos de (sobretudo) José Labaredas e de Heliodoro Barradas que o grupo se movimentou pela cidade, rumando várias vezes ao restaurante O Fado, em Knightsbridge, local de encontro entre portugueses e brasileiros exilados, e onde os três músicos chegam também a tocar informalmente, à mesa, em jeito de tertúlia. É então que, através de Labaredas, se encontram com Gilberto Gil e Caetano Veloso, fugidos igualmente da ditadura que fustigava o Brasil.
Gil e Caetano chegam a assistir a algumas sessões de estúdio e é a eles que se chega a ouvir o grito "mete aí uma sétima aumentada!" – o máximo a que se permitiram ir em
termos de intervenção nas gravações. De resto, oficiosamente, era Carlos Correia o director artístico, o responsável pelos arranjos de cada um dos 11 temas – e que, conta
com orgulho, recebeu a aprovação de Gil quanto à belíssima frase introdutória de "Verdes São os Campos". A presença de Gil e Caetano – na altura envolvidos no movimento tropicalista – era movida sobretudo por uma curiosidade pela figura de José Afonso. "Já conhecia gravações do trabalho dele e sabia da sua reputação como grande trovador e do seu empenho na luta contra a ditadura e a opressão", revela Gilberto Gil. "Ele era um artista obrigatório para quem quisesse compreender um pouco a situação da música contemporânea em Portugal. Coincidentemente com o interesse musical havia também um interesse pela dimensão social e política da obra. Penso que em ambos os casos foi esse
aspecto que estabeleceu a curiosidade maior em relação a conhecermo-nos". Para além de que, acrescenta, sentiam-se intimamente ligados por uma situação semelhante: "Ele era um artista de certa forma perseguido pelo regime em Portugal e nós a mesma coisa em relação ao Brasil".
Nesses tempos passados em grupo, chegam a passar um dia (de descanso) em Hyde Park a ouvir música, gente a quem nunca souberam o nome, mas grandes músicos (provavelmente outros exilados) que ali tocavam para quem os quisesse ouvir, a troco não de um cachet mas de um pouco de atenção. "Numa das fotografias tirada pelo Labaredas, estou eu, o Zeca, o Gilberto Gil com o seu cabelo à Jimi Hendrix e o Caetano, que diziam até que era meu irmão pelo tom de pele", lembra Colaço.
Com o relógio a avançar impiedosamente e a esgotar-se o prazo contratualizado entre Arnaldo Trindade e a Pye Records, o grupo entrega-se a uma dura maratona final para terminar o disco, dando-se posteriormente o caso de Zeca recusar a primeira mistura. "Os últimos dias foram muito trabalhosos", lembra Colaço. "E o Zeca nisso era muito exigente – quando a música não estava como ele queria, repetia-se e repetia-se até ficar. Era muito crítico em relação a ele próprio, com a qualidade da voz, muito mais do que em relação a nós. Às vezes até éramos nós que dizíamos !Não, não, ainda não está". Aliás, há coisas que ainda hoje acho que podia ter feito melhor". Relato, de resto, comum a qualquer gravação que mereça ver o seu nome aprovado em qualquer discografia essencial.
No regresso a Portugal, imperava ainda assim a ideia de que o mês anterior tinha oferecido à música portuguesa um disco histórico, uma obra que o tempo não conseguiria vulgarizar ou ao qual conseguiria roubar o seu alcance artístico. Mas também as autoridades portuguesas pareciam ter essa certeza e se Colaço conseguiu fintá-las e embarcar para Londres, fora naturalmente identificada a sua real motivação para sair do país. À chegada a Portugal, rapidamente mergulha na clandestinidade com a ajuda de
Zeca Afonso e não demora a passar as fronteiras. Meses mais tarde, ouvirá o disco pela primeira vez em Argel, na Rádio Voz da Liberdade, na companhia de Manuel Alegre.
Cumprido um primeiro disco gravado fora do país, com peso absoluto colocado sobre a palavra, Zeca partirá depois para uma experiência totalmente diferente. Com José Mário Branco, a ambição musical será outra."
Gonçalo Frota, Abril de 2012
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Cantigas do Maio (1971)
Edição remasterizada a 24bits a partir dos masters originais.
Inclui textos exclusivos da autoria de Gonçalo Frota e Valete.
1 – Senhor Arcanjo 3!50"
2 – Cantigas do Maio 5!47"
3 – Milho verde 2!15"
4 – Cantar alentejano 5!33"
5 – Grândola vila morena 3!29"
6 – Maio maduro Maio 3!16"
7 – Mulher da erva 2!46"
8 – Ronda das mafarricas 2!48"
9 – Coro da Primavera 4!50"
"A expansão do universo
"O Zeca está em Paris, está a cantar no Boulevard Saint-Michel!". Uma voz apressada e nervosa procurava José Mário Branco a fim de lhe entregar esta mensagem urgente e de importância não menos do que vital – a vida, de facto, não seria a mesma a partir daí.
Estavam pela primeira vez a uma distância razoável, possível de ser reduzida até terminar num aperto de mão, num abraço até. José Mário encontrava-se nessa noite de 1969 a cantar numa colectividade nos arredores norte da capital francesa. José Afonso – Zeca para qualquer português que visse nas suas canções uma tocha a apontar o caminho – estava no centro da cidade, no Boulevard Saint-Michel, no número 93, num pequeno auditório do Foyer International des Etudiantes. "Despachámo-nos a correr porque eu não conhecia o Zeca pessoalmente", lembra José Mário.
Atravessou rapidamente a cidade até chegar ao Quartier Latin. O auditório do lar para raparigas estava nessa noite por conta dos muitos portugueses exilados em Paris e, à porta, o controlo das entradas era feito por um velho conhecido – Adolfo Ayala, um dos fundadores do Partido Socialista, veilleur de nuit do Foyer – que lhe permitiu o rápido acesso à presença de Zeca. É nessa noite que José Mário e Zeca se conhecem por fim.
A partir de então, Zeca começa a funcionar como correio entre José Mário Branco e os seus editores, entre a sua música e o seu público. É ele quem traz para Portugal as fitas com a gravação do single Ronda do Soldadinho e quem estabelece a ponte com a Sasseti, casa que viria a publicar o álbum de estreia de José Mário, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades. Nesse vai-vém resolve-se na cabeça de Zeca a forma ideal de abordar a necessidade crescente de ver as suas canções agigantarem-se, conquistarem terreno para além da fórmula voz e viola, reclamarem um espaço musical para além do trovador. Essa ambição transforma-se em certeza e resulta no convite a José Mário Branco: o próximo havia de ser com ele.
Numa dessas viagens, Zeca mete-se no carro rumo a Paris, com escala em Valência porque há ainda que dar um concerto pelo caminho. Consigo segue a sua mulher Zélia Afonso, mas também Francisco Fanhais. Pouco a pouco, a vida de Fanhais em Portugal tinha sido reduzida à inacção devido a três proibições: "a de cantar – porque nessa altura já era muito complicado para todos nós cantarmos; dar aulas também não podia; e estava suspenso das minhas funções de padre". Precisa então de "arejar, respirar e ver que novos horizontes" pode oferecer à sua vida. Nesse Abril de 71, Zeca leva-o até Paris, onde José Mário Branco o chamará para o grupo de Cantigas do Maio.
José Mário tinha já gravado com Gilles Sallé no estúdio de Michel Magne, a 30 quilómetros de Paris, no Château d!Hérouville. O regresso a esse local de boa fama – por onde tinham acabado de passar os Grateful Dead e gravariam seguidamente Elton John e Pink Floyd, entre outros – far-se-ia no final do ano, em Outubro e Novembro de 1971 para a gravação de Cantigas do Maio. Processo que beneficia em muito dessa experiência prévia de José Mário Branco. Não só pela maturada definição de noções e estéticas, mas igualmente pelo conhecimento prévio dos melhores músicos a contratar localmente para dar corpo às ideias que se vão empoleirando na sua imaginação. A encenação começa a ter uma forma, José Mário planifica-a ao milímetro e quando entram
em estúdio o álbum vai ganhando os contornos que o músico tinha sonhado no papel como resposta ao "pacote de canções inéditas" que Zeca lhe levara e ao "ambiente sonoro do disco" sobre o qual haviam já conversado. "Que eu me lembre, não me pôs grandes condicionantes", diz o director musical. Com uma única excepção. "Havia alguma prevenção dele contra a electrificação do som dos discos". Em vez disso, pedia aquilo a que chamava "sons nobres". As cordas, os sopros, as percussões, sim, mas sem tomadas por perto.
Mas por mais que José Mário Branco se tivesse preparado, a verdade é que o convite vindo do mestre foi, à falta de melhor definição, "um susto". Passamos-lhe a palavra: "Eu tinha pouca experiência de gravações. Já começava a organizar na minha cabeça uma série de conceitos e de opções artísticas, estéticas, técnicas, com a experiência do primeiro álbum que tinha gravado. Mas era a sensação de como se, de repente, me pusessem nas mãos um punhado de diamantes para eu lapidar". Ainda que, muito conscientemente, soubesse que tinha liberdade para aplicar o seu vocabulário musical.
"O Zeca era uma pessoa muito atenta e muito inteligente", enquadra. "E, portanto, se vem ter comigo para eu dirigir o disco dele, depois de ouvir o que eu tinha feito no Mudam-se os Tempos, ele devia contar que ia haver mudanças".
Com Zeca, partira de Portugal Carlos Correia (Bóris), que assegurara já as guitarras no álbum anterior, Traz Outro Amigo Também. Bóris, por sua vez, levava os acompanhamentos de guitarra saídos da sua invenção devidamente estudados e prontos a registar. Mesmo que depois pudessem ser pontualmente suprimidos pela concepção geral de José Mário Branco. No caso de "Cantar Alentejano", tocante evocação de Catarina Eufémia, a decisão foi outra: deixar a voz de Zeca Afonso a pairar somentesobre o belíssimo rendilhado desenhado por Bóris – "não mexo nisto – as tuas palavras, a tua voz e a guitarra do Bóris" terá dito o produtor. Gravaram então sem rede, em directo. Mas a interpretação não estava a sair – ou porque a voz hesitava, ou porque fugia um dedo a Bóris e se estatelava na corda errada. É então que Zeca anuncia: "Preciso de respirar, não está a sair, posso parar meia hora? Vou lá fora ver as vacas".
Ao voltar, grava à primeira, de uma só vez, princípio ao fim, tal como se ouve no disco.
Mesmo com o pessoal a ficar hospedado e a comer na casa apalaçada onde se encontravam as salas de gravação, a planificação de José Mário Branco teve de ser milimétrica
para não derrapar: "A conclusão disso é que ia tudo muito planificado
para estúdio, os takes todos, o aproveitamento até ao fundo do tacho da
presença de cada músico em cada sessão, uma vez que ganhavam à sessão, e o tempo de estúdio era pago à hora". Para as sessões, José Mário Branco escolheu músicos como o percussionista Michel Delaporte – "conheci-o como baterista três anos antes, chamado por mim para um disco do James Ollivier" -, o baixista Christian Padovan – que tocara guitarra eléctrica no álbum de José Mário -, o flautista Jacques Granier e Tony Branis, trompetista do cabaret Moulin Rouge.
Acontece que, devido às complicações burocráticas envolvidas nas transferências bancárias internacionais naquele tempo, Cantigas do Maio avançava já apressadamente para o final das misturas e o pagamento da Orfeu continuava por efectivar-se. José Mário pega no telefone e disca o número de Arnaldo Trindade: "Estou aqui encravado porque o dinheiro não chegou. Se você não põe alguém no avião que esteja aqui com o dinheiro amanhã eu vou endividar-me por outro lado e fico eu com a fita". Mas, de facto, no dia seguinte o estúdio recebe a visita do contabilista de Trindade, chegado com o dinheiro acordado no bolso. Seguindo instruções naturais do seu empregador, pede para ouvir a fita praticamente acabada e certifica-se que o trabalho está quase concluído. Liga então para o Porto e depois de um sumário relatório chama "Oh Zé Mário, venha aqui, o senhor Arnaldo quer falar consigo". E o diálogo que se seguiu, gravado na memória do músico, foi mais ou menos assim:
– "Zé Mário, parabéns, o Pereira já esteve a ouvir e diz que está muito bonito. Só tinha uma dúvida para lhe pôr e queria que me esclarecesse. O Zé Mário combinou comigo que tinha um cachet de X por cada canção. Mas o Pereira disse-me que no disco há umas canções praticamente só com a voz do Zeca. Então e o Zé Mário faz o mesmo preço para essas?".
– "Oh Arnaldo, você está enganado, essas deviam ser mais caras. Você não me paga os instrumentos que eu ponho, paga-me os que eu tiro. Quando há uma canção para orquestrar ou arranjar, eu tenho na cabeça todos os sons possíveis. O meu trabalho não é pôr, o meu trabalho é tirar, limpar, limpar, limpar".
Arnaldo Trindade aceita a explicação e José Mário Branco acabava de enunciar em voz alta "uma espécie de síntese" da sua aprendizagem ao longo dos anos de produção musical.
"Grândola, Vila Morena" será, inevitavelmente, a canção mais emblemática de Cantigas do Maio. E tem uma história a dois tempos, ambos em terras alentejanas. Recuemos a 17 de Maio de 1964. José Afonso viaja de carro a caminho de Grândola. Com ele seguem Carlos Paredes e Fernando Alvim. Actuam nessa noite na Fraternidade Operária Grandolense e regressam em seguida, altura em que a vila se cola ao canto que Zeca começa a urdir. "Ele ia cantando ao volante – até para não adormecer -, depois começou a desenvolver a melodia e quando chegou ao fim da viagem a canção estava feita",recorda Alvim. Às quatro da manhã, "Grândola, Vila Morena" nascia na garganta e na cabeça de Zeca Afonso. E foi assim que, anos mais tarde, chegou às mãos de José Mário Branco.
Ao pensar na estrutura e na encenação do tema, José Mário recua ele próprio para o seu passado no Alentejo. Alguns anos antes, ainda estudante, era habitual juntar-se a um grupo de amigos e rumar até à aldeia de Peroguarda, próxima de Beja. "Íamos às vezes passar as férias da Páscoa no meio dos camponeses". A experiência viria a ser determinante na gravação de "Grândola", pela imagem – mais visual até do que sonora – que guardava desse período. Ao ouvir Zeca cantar, José Mário recordou "os trabalhadores a virem da monda, cansados, naquela postura em que agora os vemos tipicamente a cantarem, abraçados, na largura da estrada toda e com o pé, o movimento, a fazer parte da música". Daqui, surgem duas ideias. A primeira: "Oh Zeca, por que não damos a isto a forma do cante alentejano – o ponto, o alto, a resposta do coro, a inversão de quadras?". A segunda: a incorporação desse movimento dos pés a marcarem o ritmo, a darem o chão para as vozes se levantarem.
É então que José Mário questiona Gilles sobre o melhor sítio para gravar estes passos. Assim, em volta da casa acastelada, com o estúdio instalado no sótão, fixam-se num espaço perto das dependências e das cavalariças, os pés na gravilha. Sallé desencanta uns enormes cabos de microfone e extensões igualmente longas para os auscultadores que emitiriam o metrónomo eletrónico. Depois, foi esperar pelas três da manhã, "porque podia passar uma motorizada numa estrada ou um carro, podia mugir uma vaca num campo ali ao lado". Abraçados como os camponeses, Zeca, José Mário, Bóris e Fanhais gravam três ou quatro minutos dos seus passos na gravilha, num movimento circular. No dia seguinte, os mesmos quatro gravam as vozes que ficariam para história da música portuguesa e da Revolução de Abril.
O único momento em que a visão de José Mário entrou em choque com a vontade de Zeca aconteceu em "Maio Maduro Maio". Tudo começou com "Zeca a torcer o nariz quando começou a ouvir aquela trompete bouchée, mais o coro à Lopes Graça". "Zé Mário, isto é para ficar assim?". Primeiro, o produtor engoliu em seco – "O mestre diz uma coisa destas e um gajo fica à rasca". Depois, defendeu o ambiente que tinha criado.
"Zeca, isto é bom. Não te pus exigência nenhuma neste disco, tenho feito tudo como tu queres. Neste caso, peço-te uma excepção. Peço-te que deixes ficar o arranjo como eu quero e depois voltamos a conversar daqui a dez anos". Zeca piscou-lhe o olho. "Está bem, depois falamos".
É um dia como qualquer outro em 1979. José Mário Branco e a sua companheira Manuela de Freitas vêm do Teatro A Comuna e sobem a Rua de Campolide. Estão a passar em frente ao estúdio hoje conhecido por Xangrilá quando dão de caras com José Afonso, descendo do café, que ali se encontra a finalizar Fura Fura. José Mário e Zeca tinham-se afastado no pós-25 de Abril, seguido diferentes rumos políticos e musicais.
Põem rapidamente a conversa em dia, Zeca informa que estão em fase de misturas, convida José Mário a aparecer para dar uma ajuda. Assim ficam combinados e quando se despedem, Zeca solta: "Olha, é verdade, lembras-te daquela discussão que tivemos por causa do Maio Maduro Maio?". "Lembro. Porquê?". "Tinhas razão".
Gonçalo Frota, Abril de 201
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Eu Vou Ser COmo A Toupeira (1972)
Edição remasterizada a 24bits a partir dos masters originais.
Inclui textos exclusivos da autoria de Gonçalo Frota e Tiago Sousa.
1 – A morte saiu à rua 3’11"
2 – Fui à beira do mar 3’41"
3 – Sete fadas me fadaram 2’36"
4 – Ó minha amora madura 2’19"
5 – O avô cavernoso 2’51"
6 – Ó ti Alves 2’50"
7 – No combóio descendente 2’45"
8 – Eu vou ser como a toupeira 2’02"
9 – A caminho de Urga 2’58"
10 – Por trás daquela janela 3’48"
"O disco fraterno
Até 1971 e José Afonso entregar-se nas mãos de José Mário Branco – regressando de França com uma obra-prima na mala -, esta que se segue não era exactamente uma questão. O percurso de José Afonso era um somatório de experiências no sentido da consolidação de uma linguagem própria, primeiro soltando as amarras que temporariamente o haviam prendido a Coimbra, depois avançando com timidez para uma canção de magnetismo suficiente para atrair a música africana e as músicas populares portuguesas. Mas depois de Cantigas do Maio, de uma construção musical ambiciosa e sofisticada, e de um feito prodigioso para a história da música deste país, o caminho bifurca-se: passa a haver um Zeca Afonso do palco e um José Afonso do estúdio.
Nas suas actuações, Zeca far-se-ia sempre acompanhar por um viola e pouco mais, reduzindo a sua música ao osso, a uma função eminentemente política e a uma extensão da fraternidade – as canções como prolongamento de uma partilha maior de valores, lutase e crenças. Daí que, em 1972, quando avança para a gravação de Eu Vou Ser Como a Toupeira, o músico pareça querer recuperar igualmente essa ideia de espelho fiel: olha-se o estúdio e vê-se o palco. Ao contrário do que acontecera em Paris com José Mário Branco, aqui não há músicos de sessão, há antes uma convocatória distribuída entre amigos e companheiros de estrada portugueses e galegos. José Jorge Letria, que muitos palcos partilhara já com Zeca, foi um dos que seguiu para Madrid. As suas palavras caem dentro dessa definição: "Creio que ele procurava um compromisso entre o total improviso do palco e a rigidez planificada do estúdio de Hérouville. Para ele o clima era este – trabalho de grupo. Ele era um obcecado com o colectivo porque queria sempre diluir o seu protagonismo natural e legítimo. Ele era mais um. Era um companheiro, um camarada, um militante de base".
A decisão é, de facto, levada quase até às últimas consequências. Em Eu Vou Ser Como a Toupeira a ficha técnica não nos diz quem tocou o quê. O "trabalho de grupo" varre para debaixo do tapete os protagonismos, as maiores contribuições e esconde também quem, na verdade, mal deixou a sua marca no disco. Há uma recusa de hierarquização. A obra colectiva é, no entender de José Jorge Letria, "uma expressão política do pensamento político" de José Afonso. Ele que subia a um palco e anunciava "Eu não sou um cantor, sou um animador", ele que subia a um palco e declarava "Eu não faço espectáculos, faço sessões populares", ele que olhava para as salas onde era convidado a actuar como "tribunas de comício" e para os concertos como "actos essencialmente políticos e não tanto artísticos". Letria e Fanhais andavam com ele "numa roda-viva, sobretudo nas zonas operárias, desde os estaleiros de Viana até à Marinha Grande e ao Alentejo e Margem Sul". Nessa altura, no período chamado "pós-Zip" – pós-69 -, actuavam juntos três e quatro vezes por semana.
Depois desses concertos, não raras vezes, Zeca acabava a pernoitar em casa de Letria, para os lados da Avenida de Roma, Lisboa. Foi nesse contacto mais íntimo e longe dos ouvidos indiscretos que o seu companheiro de tantos palcos tomou contacto com o método de composição: "Ele normalmente ia a trautear, a assobiar as canções e então precisava urgentemente de um gravador que tivesse ali ao pé para assobiar, trautear, registar uma estrofe ou duas". "Depois", acrescenta Carlos Alberto Moniz, "enchia a cassete, virava o lado, aquilo acabava e virava outra vez – chegava a levar quatro banhos de música e, claro, ia apagando as primeiras ideias". As canções eram depois construídas em torno
dessa referência melódica base.
O ambiente de pouca planificação atravessa a semana de gravação nos Estúdios Cellada.
As músicas, segundo recordava José Niza, eram alinhavadas de véspera, no hotel, e levadas para estúdio sem uma forma final muito rígida. Os ensaios, lembra, Moniz, nunca foram algo que Zeca apreciasse especialmente. Tanto que o grupo chega a encontrar-se antecipadamente com o galego Benedicto Garcia em Setúbal, mas apenas "dois ou três dias antes" da partida para Madrid. Moniz conta até que, nessa mesma altura, e antes de um concerto importante na Fête de l’Humanité, em Paris, no mesmo palco por onde passariam Mikis Theodorakis ou Leonard Cohen, tinham passado uma semana na Fuzeta para ensaiar. Mas os ensaios acabavam sempre empurrados para fora dos dias. "O Zeca punha o seu kimono e íamos todos correr para a areia primeiro, antes de ensaiar. Como
pessoa talentosa que era, inventava tudo para não ensaiar. Corríamos na areia, ele ensaiava os passos de judo e depois à noite, antes do ensaio, era capaz de vir dizer ‘hoje dá ali um filme bestial’. Eu a pensar que era um Truffaut ou um Renoir e era um filme de kung fu. Mas íamos todos ver o kung fu e, no final, ele dizia ‘Bestial, agora que a gente descomprimiu o ensaio vai correr bem’ e ensaiávamos às tantas".
A maioria dos músicos vai chegando de comboio à capital espanhola e ao grande apartamento que Arnaldo Trindade lhes alugara na Torre de Madrid -arranha-céus numa das principais artérias da cidade -, enquanto Zeca parte com Carlos Alberto Moniz e a sua mulher Maria do Amparo num dois cavalos vermelho. Para Letria, "ele percebe com o José Mário que há um horizonte orquestral que tem de aproveitar e que vai enriquecer a sua música. A partir desse momento acaba o clima de happening que caracteriza as gravações dele. Mas, apesar de tudo, o Eu Vou Ser Como a Toupeira ainda é marcado por esse clima, uma situação em que chegamos ao estúdio e nada está pré-programado". Até por isso, Letria chega a pôr-lhe a questão de não ser "propriamente o instrumentista que Zeca
precisava de ter", alguém como fora Bóris até aí e seria Yório Gonçalves daí em diante, na posição de guitarrista-âncora.
Só que o espírito que atravessava os vários quartos do apartamento conservava ainda "um ambiente de euforia colectiva que tinha muito de república coimbrã, daquela Coimbra académica, boémia, conspirativa". À noite fazia-se o brainstorming em torno das canções, procedia-se a uma distribuição de funções e papéis – "amanhã avançamos com esta, tu tocas esta guitarra, tu tocas aquela, tu fazes a percussão" – e iam-se juntando ideias voadas de todos os lados, dando sustento e corpo à ideia de criação colectiva. A presença dos músicos galegos nesse grupo adquiriria uma dimensão simbólica – o papel de Benedicto (do grupo Voces Ceibes), Pepe Ébano ou Maîte é, ao contrário do de Carlos Villa, de uma diminuta relevância musical, fortificando e oficializando sobretudo a relação próxima com aquela região. Ainda hoje, de resto, José Afonso é celebrado na Galiza como um dos seus.
Mas de onde vinham estes dois pilares – José Jorge Letria e Carlos Alberto Moniz – com quem nunca tinha gravado antes? "Ao Zé Letria que também sofre de azia" – assim se lê na dedicatória que lhe faz de um poema escrito em Maio de 1973 na prisão de Caxias – conhecera-o em 1968, recém-regressado de Moçambique, num convívio universitário da Faculdade de Direito de Lisboa. Como também ele era um fazedor de canções em português, rapidamente integrou o pequeno grupo dos cantores de intervenção. Moniz, chegado dos Açores para estudar Agronomia, apresentava-se sempre na primeira fila das noites organizadas pela associação de estudantes no anfiteatro da sua faculdade, de guitarra descansada no colo, à espera que alguém desse por ele e o chamasse para o palco. Esse alguém foi Adriano Correia de Oliveira. "Não és tu o puto dos Açores?". Moniz soltou um tímido "Sou". "Então amanhã temos gravação". Na gravação, de temas tradicionais açorianos, conheceu Zeca que com o mesmo desprendimento o informa: "vais tocar comigo também". O terceiro pilar, José Niza, era um velho conhecido que acompanhava desde as digressões da Tuna Académica de Coimbra em 1958.
A partir daí, chegados ao estúdio, era sobretudo o instinto musical de Zeca que guiava o grupo, que seguia atrás de si. Na descrição de Letria "havia ali uma grande imprevisibilidade e um grande improviso, mas que correspondia a uma coisa em que todos acreditávamos muito que era uma intuição apuradíssima que ele tinha. Às vezes parecia uma coisa pouco sustentada e até ridícula, mas aquilo correspondia sempre a uma coisa estruturada, profunda, sentida, porque ele era realmente um génio musical. Nas palavras não mexia; agora, não cantava duas vezes a mesma coisa da mesma maneira". O resto, na verdade, estava em permanente mutação, até porque os períodos de estúdio eram de grande ansiedade e nervosismo para José Afonso – que podia perder-se (nos seus passeios pela cidade ou em idas ao cinema), ter uma crise a que chamava "uma pedra no diafragma" ou outro acontecimento inesperado. Gravar, acredita Letria, era para Zeca "um martírio". E só o fazia, acredita ainda, para justificar o adiantamento de Arnaldo Trindade.
Na verdade, acredita ainda mais um pouco, não sentia necessidade de registar as canções.
Apesar disso, era exigentíssimo, destoando em grande escala do comportamento tipo que estamos habituados a associar aos músicos mais canónicos: "estão sentados, a ouvir, não querem barulhos, sentados à frente da mesa de mistura e absolutamente concentrados".
"O Zeca não", ressalva. "Era um peripatético, andava permanentemente em circulação, de mãos nos bolsos, e tanto andava na régie como no estúdio. Mas com uma atenção permanente e total. E portanto vinham-lhe umas centelhas, umas iluminações, umas sugestões e isto mudava tudo". Um desses momentos iluminados aconteceria quando, à procura de um som de percussão que não conseguiam encontrar, Zeca ouviu às tantas Niza num momento de pausa na régie a mastigar um bocadillo de presunto e percebeu que era esse o som que procurava, gravando-se então José Niza a comer com microfone cuidadosamente apontado à sua boca. Essas centelhas, no entanto, exigiam frequentemente aos instrumentistas uma descodificação em que importava uma sintonia mais poética do que propriamente musical. Segundo Moniz, "o Zeca conseguia transmitirnos o que queria, como os publicitários quando querem um jingle, dizendo coisas como ‘queria assim um som castanho, com um ataque entre o ferro e o bronze’. E a gente conseguia".
Daí que as canções tenham chegado ao estúdio de Cellada não com uma forma final, fechada, mas antes em aberto, erguendo-se a partir dos esboços preparados mas abertas para as ideias em resposta àquilo que ia ficando cravado no esqueleto de cada tema. Um dos exemplos perfeitos deste método terá sido "No Comboio Descendente", música sobre poema de Fernando Pessoa, congregador de uma série de palpites, sugestões e ideias que tornaram o seu registo especialmente sinuoso. Letria lembra igualmente "Ó Ti Alves", com um forte cunho de Carlos Alberto Moniz, e que se socorre de parte de um pregão como tentativa de Zeca "aproximar-se o mais possível do clima de algumas canções numa perspectiva neo-realista dos sons que ouvira em África na infância ou mesmo mais tarde".
Esse cunho, ressalva Moniz, faz de Eu Vou Ser Como a Toupeira um disco algo irregular, a que – para o bem e para o mal – falta "uma unidade nos arranjos". Num tema é o cunho de Moniz que sobressai, noutro é o de Benedicto, noutro ainda é o de Niza, etc. Um dos temas que, curiosamente, não levantou dificuldades de maior foi aquele que serve de arranque ao álbum: "A Morte Saiu à Rua". Na verdade, o problema com a canção fora anterior à partida para Madrid. Tentando ludibriar a censura, e depois de lhe perceber as manhas, José Niza pede a Zeca Afonso que o municie de poemas propositadamente mais carregados politicamente que não estão sequer previstos seguir para gravação. Servem apenas de manobra de distracção preparada para saciar a sede de cortes dos censores, preservando intacto o grupo de canções originalmente pensado para as gravações. No caso de Eu Vou Ser Como a Toupeira acontece que "A Morte Saiu à Rua", tema-charneira do disco, é censurado num primeiro momento. Niza convida então o ex-coimbrão Pedro Feytor Pinto, ligado à censura, para um almoço no restaurante A Varanda do Chanceler. O acordo de cavalheiros entre ambos solta o tema e permite que todos aqueles que faziam parte do plano de gravação passem incólumes, sem riscos feitos a lápis azul.
E passou também, naturalmente, o tema que baptizou o álbum. Em entrevista ao próprio José Jorge Letria, então jornalista no República, Zeca reconhecia ter de se fazer modelo das toupeiras. Havia que "abrir galerias subterrâneas, ir rasgando caminho". A canção, por muito bonita que fosse, não podia ser mero adorno."
Gonçalo Frota, Maio de 2012