Texto: Nuno Galopim em São Paulo
Um encontro criado de propósito para o festival entre Adriana Calcanhotto e Arnaldo Antunes, um reencontro de Lenine e Marcos Suzano com o histórico álbum “Olho de Peixe” e uma emotiva e muito ovacionada despedida do trio O Terno (cuja vida em palco ainda inclui passagens por Portugal e Japão, mas que aqui disse adeus ao Brasil), representaram momentos altos do primeiro dia da décima edição do Coala Festival, em São Paulo.
A ideia começou por ser a de fazer um festival unicamente dedicado à música brasileira. E agora, ao chegar ao seu décimo aniversário, o Coala expande-se para Portugal, abarcando outras frentes, da música portuguesa à da África Lusófona. Assim foi, com uma primeira edição realizada em junho em Cascais, com nomes como os de Gilberto Gil, Carminho, Jorge Ben Jor, Mayra Andrade, Eu.Clides ou Rubel no cartaz, havendo já datas anunciadas para uma segunda edição portuguesa, no mesmo local (o hipódromo Manuel Possolo) nos dias 31 de maio e 1 de junho. De 2025. E a décima edição brasileira do festival, que uma vez mais ocupa o vasto espaço do Memorial da América Latina, um centro cultural projetado por Oscar Niemeyer que mora mesmo ao lado da estação de metro da Barra Funda, não esquece esta ligação nova em construção, integrando no cartaz uma curadoria de um espaço de Clubbing por onde vão passar nomes como os de Kalaf Epalanga ou Shaka Lion.
A despedida brasileira ao grupo O Terno, trio que junta Tim Bernardes (voz e guitarra), Guilherme D’Almeida (baixo) e Gabriel Basile (bateria), naturalmente colocada no encerramento do primeiro dia do festival, despertou emoções tanto que, uns dez minutos depois do fim do concerto, ainda a multidão não arredava pé à espera de mais uma canção… Não era possível. Para respeitar horários, tanto do bairro residencial em volta como dos transportes púbicos, o calendário é escrupulosamente cumprido. E o adeus aconteceu, depois de mais de uma hora de revisitação de canções dos quatro álbuns do grupo, o derradeiro dos quais, “Atrás/Além” (2019) merece já um lugar entre os títulos de referência da história da música popular brasileira.
Para uma banda que deu os primeiros passos ainda no final da primeira década deste século, cantando então versões de canções dos Kinks, dos Beatles ou dos seus conterrâneos paulistanos Os Mutantes, o percurso do Terno confirma, como depois do espetáculo explicava Tim Bernardes, que é possível um grupo claramente indie ter um percurso de progressão capaz de o levar de pequeníssimas salas ao palco de um grande festival. Sobre o momento da despedida, o baterista Guilherme d’Almedia explicou à Antena 1 o que era viver com um relógio a apontar para o zero: “O relógio não está caminhando para o zero… Está seguindo. E faz parte dessa sequência do relógio o momento vai entrar em ato… A gente não está indo para o nada. Há uma parte das nossas vidas na qual a gente conclui um ciclo e depois começa uma nova fase em que a gente vai estar junto de outras maneiras. É lógico que é um fechamento, dessa história da banda até aqui, mas a gente está já com a cabeça tão focada nas coisas que estão rolando pela frente que a nossa sensação dessa morte não é muito triste. É mais uma vida que segue”. E Tim Bernardes logo acrescentou: “É a alegria de poder fazer uma conclusão. E bem feita. E se em alguma vez a gente quiser voltar a tocar juntos, esta coisa ao menos ficou feita direita. Então a gente lida com um potencial final, mas a gente sente que a nossa afinidade é muito boa ainda, então é poder se permitir, se desatar, para qualquer um fazer as suas coisas tranquilamente e saber que O Terno está bem preservado”, concluiu.
Sobre a ida do Coala para Portugal o mesmo Tim Bernardes comentou, com entusiasmo, o bom momento que se vive no diálogo entre novas bandas e novos públicos de ambos os países, notando o papel que um festival como este pode vir a tomar, notando que será, assim, “um reflexo de um movimento natural que está rolando”. E explicou: “O streaming e as redes sociais possibilitaram um contactos direto dos públicos portugueses para a música brasileira e vice versa. Falo de bandas novas, que vejo multiplicar… E depois da pandemia mais ainda, tal é a quantidade de bandas que estão indo a Portugal e que têm estrutura para chegar às pessoas lá. E eu sinto que vai começar a haver mais e já estamos vendo isso um pouco artistas portugueses atingindo os jovens de aqui. Eu acho que é algo que naturalmente vai crescer mais nos próximos anos”.
Antes d’O Terno o palco principal coube a um episódio expressamente criado para este momento: um encontro entre uma das grandes referências da MPB do nosso tempo (Adriana Calcanhotto) e um dos maiores talentos nascidos entre o rock brasileiro dos anos 80 (Arnaldo Antunes, revelado através dos marcantes Titãs). Ora surgindo em separado, ora em segmentos partilhados, ambos evocaram momentos dos seus percursos, ora os trocaram e partilharam. Não foi um espetáculo de génese difícil, revelou depois Arnaldo Antunes, que, sorrindo, disse que foram trocando ideias pelo WhatsApp e rapidamente um alinhamento começou a ganhar forma. Adriana Calcanhotto sublinhou a importância da vinda do Coala para Portugal como forma de acentuar a criação de mais pontes. “Eu adoro os encontros que os festivais promovem porque são coisas que talvez não acontecessem se não fossem essas provocações”, afirmou à Antena 1, sublinhando que “estes encontros são bacanas para os artistas e também para o público. Há públicos diferentes que vão ver este artista e acabam a ver outros, gerando encontros inesperados. Acho ótimo o Coala ir para Portugal”. Arnaldo Antunes lembrou, perante a sugestão de eventuais jogos de parcerias como a que os dois tinham acabado de apresentar, que serão uma ideia interessante, já que este tipo de “encontros são sempre uma oportunidade para você fazer coisas que não faria se não tivesse aquela motivação. E entre artistas brasileiros e portugueses eu acho uma ideia excelente”. E deixou até uma sugestão no ar: “Se rolar essa iniciativa é muito bem vinda. Eu mesmo tenho parcerias com artistas portugueses que seria de bom grado promover um encontro em palco num Coala futuramente”.
Entre a luz do fim da tarde e o cair da noite (que em São Paulo chega pelas 18h), Lenine, acompanhado por Marcos Suzano, evocaram, com músculo e grande poder performativo o belo álbum “Olho de Peixe”, disco de parceria entre ambos editado em 1993. A tarde tinha antes começado com a irreverência rock’n’roll de Silvia Machete, que de resto fazia questão de vestir a pele da personagem Rhonda, cantando em inglês e por vezes dirigindo-se à plateia na língua dos Beatles e Rolling Stones. Logo a seguir os veteranos Boca Livre, donos de um raro talento na criação de harmonias vocais, percorreram etapas de um já longo percurso, presenteando a dada altura os presentes com uma versão do clássico do tropicalismo “Panis et Curcensis” (dos Mutantes).