A fava calha sempre a alguém: neste caso, coube a Ana Lua Caiano dar o primeiro concerto do Coala, pouco depois das 15h. Significa isso que a cantautora autossuficiente, que constrói os seus coros e batidas em rigoroso direto, reconhece a ironia de pedir ao público que se envolva, à luz do sol esfuziante, sem sombra: “Se quiserem, podem imitar esta marcha… para aquecerem mais um pouco”. Ainda assim, são algumas dezenas de espectadores que escutam temas como “Se Dançar é Só Depois” e “O Bicho Anda por Aí”, e contribuem com a sua própria percussão corporal. Como um reconhecimento simétrico de respeito – entre quem tão cedo começa a atuar, e quem desde logo começa a festejar.

Bom presságio para este sábado (31 maio) que inaugura a segunda edição em Portugal do festival nascido em São Paulo, novamente no Hipódromo Manuel Possolo. Foi também Cascais a cidade que presenciou concertos de Jorge Ben Jor, Gilberto Gil, Carminho ou Mayra Andrade: um novo lugar para as manifestações da música lusófona, entre clássicos e novas referências, sem estremas entre estilos. “Quem gosta de kizomba?”, perguntou Djodje, mestre de cerimónias daquilo que, em bom rigor, só pode ser chamado de “festa rija” – e os membros da banda não tiveram opção senão juntar-se, e não apenas enquanto instrumentistas, mas mostrando o que vale a ginga de cada um. “Alguma vez viram uma banda apresentar-se assim, a dançar?” Cada canção uma prova de resistência para os pés de chumbo, entre o groove rechonchudo do funaná e, como aconteceu com a participação da conterrânea Kady, o baile mais suave.

A tarde avança e já são alguns milhares de braços a empunharem leques; o meneio gentil da anca, o canto conjunto em tons de mel. Silva emerge em palco como a sua música: uma insinuação doce, os girassóis que surgem na capa do seu mais recente disco, Encantado. Ora com o “violão” nas mãos, ora no teclado, Silva conduz uma plateia não pela força, mas pela gentileza; cada refrão parece estender-se, modorrento mas nunca maçador; um dos temas que se faz ouvir, “Um Pôr do Sol na Praia”, poderia muito bem dar título ao espetáculo, imaginando o relvado do Hipódromo convertido em areal.

A hora seguinte traz um grão à engranagem: uma descontinuidade interessante, um encantamento diferente que se lança sobre o Hipódromo: assim que se cala a eletrónica pulsante do DJ set de SAYA, o Rancho de Cantadores da Aldeia Nova de São Bento irrompe, não austero, mas com a gravidade que lhe é devida. Não é um momento solene, é apenas um tira-sabores; só depois entra António Zambujo (indumentária bege, clara, em contraste com as samarras e as capas pretas dos Cantadores). Recua até 2002, ao seu primeiro álbum, “O Mesmo Fado”, para cantar “Trago Alentejo na Voz”, antes de brindar o Coala com êxitos como “Pica do 7”, “Zorro”, “Flagrante” e “No Rancho Fundo”.

“Fala comigo, Cascais”: a noite propriamente dita trouxe BK’, rapper brasileiro para quem prazer e consciência política coexistem sem clivagens. “Diamantes, Lágrimas e Rostos para Esquecer”, disco editado no princípio de 2025, foi o prato forte de uma atuação dinâmica e incansável, com o ânimo que se espera de um “Deus do Furdunço”. A BK’ juntou-se a cantora Melly – e não é por nada que o nome sugere um adjetivo como “melífluo”, justo descritor para uma voz que desliza precisamente desse jeito (e que cantou, a solo, o single “Cacau”).

Num dia notavelmente consistente, Liniker conseguiu ainda assim sobrevoar tudo o que se passara antes. O álbum “Caju” (2024), êxito comercial e de crítica no Brasil, foi o alicerce de um alinhamento que só fez dois desvios pelo antecessor “Indigo Borboleta Anil” (2021). A faixa-título de “Caju” deu o mote para um concerto cantado a plenos pulmões pelo público, súbditos voluntários da diva cintilante, potência vocal conforme às referências soul que a sua música sugere. Do erotismo de “Veludo Marrom” à petulância de “Popstar”, da vulnerabilidade de “Me Ajude a Salvar os Domingos” à carta de amor de “Tudo”: acima de qualquer coisa, o compromisso com a emoção.
“Não estou a fim de desgrudar”, cantou Liniker, espelhando o sentimento dos vários milhares de pessoas que quase lotavam o Hipódromo; “que noite inenarrável”, disse ao terminar, fazendo a escolha mais sensata: em vez de continuar a verbalizar, cantou aquele bordão que conhecemos de Manu Dibango, Michael Jackson ou Rihanna: “Mama-say-mama-sa-ma-makossa” – nada tem de significar para ostentar groove e ficar na memória.
Texto de Pedro João Santos
Este domingo (1 junho), a Antena 1 continua a acompanhar o Coala Festival Portugal, na nossa emissão especial (22h–00h) e nas redes sociais.