Apesar da dimensão cultural que hoje reconhecemos em torno dos Velvet Underground, aquela que hoje é tida como uma das bandas mais influentes de todos os tempos estava longe de ser um fenómeno de popularidade. Mesmo sendo uma das principais forças criativas do grupo, sobretudo após a saída de John Cale, Lou Reed optou por seguir um caminho a solo num momento em que o seu nome era sobretudo conhecido entre os que acompanhavam o grupo, sobretudo jovens músicos, jornalistas musicais e os seus mais atentos leitores. Tanto que, quando edita o seu álbum de estreia, no início de 1972, Lou Reed é um nome que então passa longe das atenções. Tudo mudaria, contudo, com o seu segundo disco. Editado a 8 de novembro desse mesmo ano, Transformer revelaria canções como Perfect Day, Satellite of Love, Vicious ou Walk on the Wild Side, momentos que se transformariam em clássicos da obra de Lou Reed e conquistariam um lugar na memória coletiva global da década de 70.
Há uma figura marcante no processo que conduziu Lou Reed a esse momento de reconhecimento crítico e popular. Admirador de longa data dos Velvet Underground (conta-se que o seu manager de então lhe teria levado, de uma viagem a Nova Iorque, uma cópia de teste do álbum de estreia do grupo antes mesmo de ter sido editado), David Bowie encontrou-se com Lou Reed quando este visitou Londres em junho de 1972. Bowie, que já tinha feito versões de canções dos Velvet Underground e estava então a começar a apresentar ao mundo um novo alter ego (nada mais nada menos do que Ziggy Stardust), sugeriu a Lou Reed que trabalhassem juntos. E assim aconteceu, com Bowie e o seu guitarrista de então Mick Ronson a assumirem o trabalho de produção naquele que ia nascer como o segundo álbum a solo de Lou Reed.
Por aqueles dias Warhol, figura central na etapa de lançamento dos Velvet Underground (tendo assumido a produção do disco de estreia, mesmo sem tocar na música, desenhado a capa do álbum e ajudado a pensar o seu modo de se apresentarem em palco) tinha proposto a Lou Reed que criasse um musical para a Broadway no qual iria também colaborar Yves Saint Laurent. O musical nunca se concretizou, mas o universo temático que iria abordar – sobretudo questões identitárias de género e sexualidade, jogos de ambiguidade e cenários noturnos com Nova Iorque como referência – acabaria por estar na origem das canções que Lou Reed então levaria para as sessões nas quais nasceu Transformer.
O mesmo fulgor que Bowie levara a The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars (igualmente editado em 1972) marcou presença em sessões de gravação que tiveram lugar em Londres no mês de agosto desse ano. E em I’m So Free a sonoridade acabou mesmo a visitar o livro de estilo do glam rock que então se afirmava com grande visibilidade no panorama da cultura pop/rock. Mas canções como Perfect Day, Satellite of Love e Walk on the Wild Side transcenderam o fenómeno do momento e ganharam um estatuto de clássicos. A última destas três tornou-se inclusivamente o ex-líbris de Lou Reed, fixando nas palavras uma série de referências ao universo de Andy Warhol, retratando assim memórias da cultura nova-iorquina de então. Holly Woodlawn (“Holly came from Miami F.L.A.”, ouve-se no primeiro verso), Candy Darling (“Candy came from out on the island”), Joe Dalessandro (“Little Joe never once gave it away”) e Joseph Campbell (“Sugar Plum Fairy came and hit the streets”) levam a esta canção as personagens que habitam assim um retrato que tem Nova Iorque por cenário. As notas tocadas no baixo de Herbie Flowers e o coro das “coloured girls” que entoam “Doo doo doo doo doo doo doo doo doo” por várias vezes ao longo da canção, sugerindo o efeito de um refrão que na verdade não existe, acrescentaram as linhas, cores e formas ao retrato. E assim nasceu um episódio maior que cativou atenções sobre um álbum que, todavia, não se esgota nesta canção. A capa, com uma fotografia (tirada por Mick Rock, então frequente colaborador de Bowie) na qual Lou Reed surge com sombras nos olhos, traduzia o mundo de ambiguidades que as canções colocavam em cena. Nascia assim um episódio igualmente marcante na história da iconografia do rock’n’roll.
Texto de Nuno Galopim
Hoje, ao longo do dia, a Antena 1 recorda canções de Transformer e versões que dali nasceram. Pode ainda escutar a mais recente edição do Gira Discos, integralmente dedicada aos 50 anos deste álbum.
E escutar a conversa de João Lopes e Nuno Galopim no episódio da última semana de Duas ou Três Coisas no qual, a propósito deste disco de Lou Reed, são evocados alguns dos grandes poetas do rock’n’roll.