A árvore tangente ao estúdio da Antena 1, no Castelo de Sines, é uma espécie de barómetro: se já há crianças a trepá-la, pisando os seus ramos, já o FMM está a funcionar em plena potência. Ao terceiro dia da rádio pública no festival, a equipa voltou a registar todos os desenvolvimentos dentro e fora de muralhas, condensados numa emissão especial que contou com dois habitués do FMM em direto: Gonçalo Frota, crítico musical, e João Torgal, o jornalista da Antena 1. O consenso foi claro: “surpresa” continua a ser palavra de ordem, de que foi prova o hip-hop dos palestinianos DAM, e as fórmulas não têm espaço em Sines.
A intervenção-agitação de Cara de Espelho
Foi notório o reforço dos espectadores em relação a quinta-feira, a partir das 18h, com a entrada em palco dos Cara de Espelho. “Supergrupo” não é termo que apreciem, mas não deixa de encaixar: resultam, afinal de contas, da junção de fragmentos de outros grupos que fizeram mossa na música popular portuguesa. Maria Antónia “Mitó” Mendes (A Naifa) imprime a sua voz ágil e solene a canções que perspetivam a sociedade em colapso, reivindicando um lugar na história da canção de protesto.
“Paraíso Fiscal” e “Dr. Coisinho” são títulos que se explicam a si mesmos; “Corridinho Português” e “Genuinamente” questionam os mitos basilares da portugalidade, redefinem o que legitima a pertença e a comunidade. “Vê se o tapete de Arraiolos não diz ‘made in Paquistão'”: um dos versos que se ouve com gosto num festival que transcende fronteiras e a autenticidade quando se torna castradora. Os poemas impregnados de humor e crítica revelam-se entre arranjos de pop neo-tradicional, que ganham nova pujança ao vivo, graças a Pedro da Silva Martins e Luís J. Martins (ex-Deolinda; guitarras), Nuno Prata (Ornatos Violeta; baixo), Sérgio Nascimento (bateria); Gonçalo Marques; e o aniversariante Carlos Guerreiro, a quem a Antena 1 desejou os parabéns no estúdio.
Fattú Djakité, entre o estendal e a poltrona
A Argélia tomou conta do Castelo com o trio Mademoiselle, uma homenagem manifesta ao Rachid Taha, um dos ícones da música folclórica desse país (o raï). Pulsação firme, rock rebelde e enérgico, a que só se podia ter sucedido a chegada de Fattú Djakité. Foi com um grito que começou o concerto, apresentando um disco que é também um tratado pela união. “Praia Bissau”, isto é, a convergência dos dois países a que chama casa: Guiné-Bissau – onde nasceu – e Cabo Verde – onde se lançou como cantora, compositora e ativista.
“Praia Bissau” esteve em grande destaque, para lá do alinhamento sem tempos mortos ou quebras de energia: um dos picos da noite foi o momento em que Djakité se anunciou “bendedera” do seu próprio CD. “É edição limitada; comprem, que eu sou mãe de dois filhos”, brincou, perante um público mais que seduzido. Em cena, junto a uma banda de qualidade excecional, a artista encontrava um estendal com tecidos e as bandeiras das suas nações, mas também uma poltrona, onde se sentou a meio do espetáculo. Rainha de Sines enquanto lhe apetecesse, por força da postura, da emoção a transbordar dos seus desenhos melódicos, do timbre todo-o-terreno. Após alguns anos em segundo plano, cantando com artistas como Lura, Nelson Freitas ou Tabanka Djaz, Fattú Djakité está na linha da frente.
A última emissão especial da Antena 1 no FMM Sines 2024, para ouvir de sábado para domingo (das 23h à 1h), fará a síntese desta edição e traz entrevistas com Cara de Espelho, Eliades Ochoa, Ana Frango Elétrico e mais.