Peter Gabriel tinha acabado de completar 27 anos de idade quando chegou às montras das lojas de discos um primeiro álbum a solo com o seu nome na capa. Na verdade não havia na capa mais palavras que não as que deixavam claro que aquele era um disco de Peter Gabriel. A capa mostrava o capot de um carro e, por detrás de um pára-brisas aparentemente molhado pela chuva, lá se via o rosto, discreto, de Peter Gabriel. O dono da voz, num corpo moldado de forma exuberante, que o mundo conhecia dos concertos de grande fôlego dos Genesis, era agora a figura protagonista. O nome na capa sublinhava-o. Mas a capa deixava claro que estava ali alguém que compreendia os códigos de comunicação visual na hora de apresentar novas canções. O foco estava na música de Peter Gabriel. E não no músico chamado Peter Gabriel. Aquele capot era do Lancia de Storm Thorgersson, o dono da agência de design que assinava a capa. As pingas que salpicavam a imagem tinham sido aspergidas sobre o carro (é verdade que estavam em Inglaterra mas naquele dia, ao que parece, não tinha chovido). O preto e branco da foto aceitou depois uma superfície depois colorida, destacando a chapa do carro. E lá atrás do vidro, aparentemente alheado do momento de comunicação pop que a imagem sugeria, um tranquilo Peter Gabriel aguardava que escutássemos as novas canções. Vale a pena notar que a outra hipótese considerada para a capa, com Gabriel olhando para a objectiva, com umas nada discretas lentes de contacto nos olhos (imagem usada na capa interior do LP), daria a este discurso um rumo completamente diferente.

Capa do disco homónimo de 1977 de Peter Gabriel: DR
E assim, um homem de 27 anos voltava a dar um primeiro passo. Por essa altura tinha já um percurso de vários álbuns e singles com os Genesis, de quem anunciara, em 1975, que se ia separar, em plena digressão focada no então recente “The Lamb Lies Down On Broadway”. Razões criativas, motivos familiares… O certo é que o seu caminho divergiu daquele que os velhos companheiros de escola continuaram a percorrer, agora com o baterista Phil Collins a assegurar o lugar do vocalista. A pausa que se seguiu aos últimos concertos permitiu-lhe concentrar atenções na criação de novas rotinas pessoais e na escrita de canções, tendo em meados de 1976 uma coleção de maquetes que lhe permitiram desenhar rumos mais concretos para a sua gravação. Chamou para a produção o canadiano Bob Ezrin (acabando por dividir as sessões de gravação entre Toronto e Londres). Em estúdio o próprio Peter Gabriel tocou os teclados, flautas e manipulou fitas gravadas. As guitarras foram entregues a Robert Fripp, com Steve Hunter e Dick Wagner em colaborações pontuais. Como baixista o disco contou com Tony Levin, que também tocou tuba. Na bateria estava Allan Schwartzberg, num mapa de trabalho que envolveu ainda a London Symphony Orchestra (dirigida por Michael Gibbs), o percussionista Jimmy Malen e o programador Larry Fast… Parece muita gente? Bom, nada como espreitar as fichas técnicas de álbuns posteriores de Peter Gabriel para avaliar o relativo minimalismo da operação. E assim, em sessões registadas no outono de 1976, nasceu o álbum que seria editado em fevereiro de 1977 com o título “Peter Gabriel”, acabando todavia conhecido como “Car” (os seguintes três álbuns, igualmente com o mesmo título, foram sempre tratados, por esta ordem, como “Scratch”, “Melt” e “Security”).
O álbum de 1977 abre ao som de “Moribund the Burgemeister”, canção que destaca a presença cenográfica de sintetizadores e revela um espaço de ligação entre o que poderiam ser heranças naturais do passado do próprio Peter Gabriel, abrindo caminho ao episódio de enérgica alma pop/rock que revelou o seu primeiro êxito a solo: “Solsbury Hill”, que correspondeu ao último tema gravado para o disco. Robert Fripp já tinha regressado a casa quando gravaram esta canção, pelo que Steve Hunter pediu uma guitarra acústica ao assistente e criou linhas que se tornariam imortais.
O alinhamento revela marcas de um sentido exploratório dos sons e formas que nunca abandonaria a música de Peter Gabriel, assim como sugere uma vontade em experimentar novas possibilidades e, apesar das afinidades, ensaiar caminhos diferentes face aos que tinha partilhado com a sua antiga banda. Pode não ter nascido aqui um segundo êxito pop/rock com o segundo single, o mais rock’n’roll “Modern Love”, que passou longe das atenções. Mas está aqui, a fechar o lado B, o hoje clássico e épico “Here Comes The Flood”, que correspondeu a uma das primeiras canções compostas após a saída dos Genesis e foi a maquete que “convenceu” Bob Ezrin a embarcar nesta aventura. Pelo álbum passam ainda momentos surpreendentes como acontece em “Excuse Me” (que nos faz viajar no tempo e no espaço, com a ajuda de um banjo, tocado por Fripp, e de vozes num registo teatral), episódios de elaborada filigrana em “Humdrum”, as atmosferas bluesey de “Waiting for the Big One” ou o apelo sinfónico e cinematográfico (ao jeito de filme de aventuras) de “Down the Dolce Vita”). E assim, sem romper uma certa genética “progressiva”, mas sobretudo lançando sólidas fundações para uma linguagem pessoal, aqui nasceu um clássico.