Voz temerária e definidora dos anos 1970 e 80, a paulista Rita Lee deixou-nos aos 75 anos de idade. Popularmente agraciada como “rainha do rock brasileiro”, mereceu esse epíteto durante mais de meio século de carreira, entre campanhas pioneiras pelo psicadelismo e aventuras a solo — da guitarra à bateria, do mellotron ao acordeão, da música ao ativismo e à escrita.
Antes disso, voz flauta e percussão foram os veículos primordiais da cantautora, na sua estreia perante o grande público. Era 1966 quando fundou Os Mutantes, na companhia de Sérgio Dias e Arnaldo Baptista — que admitiu, em 2007, ter provocado a saída de Rita Lee, entre disputas em nome do virtuosismo. Foi com o seu próximo grande coletivo, os Tutti Frutti, que cantou as clivagens políticas do Brasil setentista — sobretudo no clássico disco Fruto Proibido (1975) — e ascendeu ao estrelato mais sustentado.
Já censurada previamente pela ditadura militar, Rita Lee conhece nesta época uma sentença de prisão domiciliária, por alegada posse e consumo de drogas leves; cumpriu um ano de pena. O seu passo seguinte, prensado no single Arrombou a Festa (1976), configurou o oposto de uma possível moderação: uma reprovação ardente dos “bons costumes” da música popular brasileira — da qual era simultaneamente contemporânea e dissidente.
A atitude reivindicativa e o humor mordaz permaneceram, ainda que Rita Lee tenha procurado texturas mais suaves nos discos seguintes. Na transição para os anos 80, estabelece parceria criativa com Roberto de Carvalho, com quem iniciara uma relação em 1976, sem interrupção até 1991 — período responsável por alguns dos seus êxitos de assinatura, como Mania de Você (1979), Lança Perfume (1980) ou Flagra (1982). Seguindo um hiato profissional, esta ligação é retomada em 1995, a tempo de fazerem juntos a primeira parte de um concerto dos Rolling Stones no estádio Maracanã.
Ao longo da década de 2000, a verve independente continua a imbuir o seu trabalho entre estúdios e palcos, sozinha sob o holofote ou em colaboração com outras lendas da pop brasileira. Conduziu a sua digressão final em 2012, cuja última paragem em Sergipe, no nordeste do Brasil, culminou com uma acusação de desacato à autoridade. Após a edição de Reza (2012), o seu último álbum, conquistou o mercado editorial com a sua autobiografia (2016, publicada em Portugal pela Contraponto).
Vítima de um cancro do pulmão, morreu antes da edição do segundo tomo da sua autobiografia, em parte dedicada a esta luta (Rita Lee: outra autobiografia chega às prateleiras do Brasil, pela Globo Livros, a 22 de maio). A doença não apaga, contudo, a sua luta pelos direitos dos animais, os seus 55 milhões de discos vendidos, ou um legado que a posiciona, para a revista Rolling Stone, como a 15.ª maior artista de sempre na música brasileira. Um perfume duradouro.
Texto de Pedro João Santos
Esta terça-feira (10 maio), José Nuno Martins, David Ferreira e Rui Miguel Abreu prestaram tributo a Rita Lee na tarde da Antena 1. Ouça abaixo os testemunhos.