Figura ligada à cena musical de Detroit (onde nasceu em 1942), Sixto Rodriguez estreou-se com um primeiro single em 1967 e, três anos depois, via um primeiro álbum nascer entre as imediações de terrenos da Motown (por via dos músicos e editores envolvidos). Cold Fact (1970) colocava em cena um cantautor de ascendência folk (na linha Dylanesca) mas com visão alargada a desafios cenográficos maiores, refletindo os arranjos uma presença tanto de cordas à la Burt Bacharah como de ecos da (entretanto arquivada) cultura psicadélica por caminhos com alguma familiaridade com o que podemos recordar nuns Love. Fluxos de consciência habitavam canções que o colocavam como observador do seu tempo e do seu lugar no mundo… Mas na altura ninguém pareceu interessado em ouvi-lo, igual resposta cabendo ao segundo álbum, Coming From Reality, lançado um ano depois. A coisa uma vez mais não correu de feição e Sixto Rodriguez deu por si sem editora a duas semanas do Natal, tal e qual cantou em Cause dos temas do álbum de 1971. Trabalhou ainda em temas para um terceiro álbum que acabou por não gravar, e a sua vida seguiu outros caminhos, outros trabalhos (visitando pontualmente a Austrália para concertos em finais dos anos 70 e inícios dos 80).
E onde se interrompe o silêncio a que pareceram votados estes dois belíssimos discos? Foi numa África do Sul no auge da expressão do regime do apartheid, com uma nova geração de jovens brancos a encontrar nestes dois álbuns de um músico, que nem sabiam quem era, um sentido de vida, uma noção de revolta e um conjunto de retratos que comunicou com os cenários do que era o seu tempo e o seu lugar… Contou-nos, há dez anos, o documentário Searching For Sugar Man que, de resto, entre as coleções de discos dos jovens brancos sul africanos da geração de 70 havia necessariamente um Abbey Road dos Beatles, um Bridge Over Trouble Water da dupla Simon & Garfunkel e Cold Fact, do desconhecido Rodriguez. Searching For Sugar Man conta-nos a história de como um jornalista musical sul-africano arregaçou as mangas e avançou rumo a uma quimera que, na verdade, não era mais senão uma tentativa de explicar os factos de um alegado suicídio desse músico desconhecido, feito mito sul-africano (país onde vendeu mais de meio milhão de discos, sem ele mesmo o saber)…
Um dia, por volta de 1996, descobre que o morto afinal está vivo. E essa nova realidade desperta uma multidão de músicos e melómanos sul-africanos e gera uma primeira digressão alguns meses depois na mais perfeita expressão do que é uma história de mitologia rock’n’roll… Searching For Sugar Man arrumava assim, cronologicamente, uma história desta busca com final feliz. É verdade que o filme ignorou a visibilidade australiana que o músico parece ter tido entre os setentas e inícios dos oitentas, mas o isolamento em que vivia a cultura popular sul-africana nos tempos do apartheid (e do bloqueio cultural então internacionalmente imposto) explica porque aquele mito terá atingido tamanha dimensão sem que ninguém para lá daquelas fronteiras disso tivesse dado conta. É de resto essa a dimensão mais interessante do filme. A consciência de como era isolada a África do Sul dos anos 70 e de como, um fenómeno que vende 500 mil discos não tem eco internacional nem gera questões além-fronteiras. Pelo que vimos no ecrãs foi então, algo vaga a resposta do editor americano quanto aos royalties que terão eventualmente nascido de tamanho volume de vendas na África do Sul, até porque os editores locais afirmam que os pagaram. Mas mais do que um ajuste de tostões, o filme acompanha a procura o homem e a redescoberta das suas canções. E se hoje muitos o conhecem, na verdade o responsável maior será o documentário.
Contudo, ao contrário do que a narrativa de comunicação do filme tentou apresentar, não foi apenas Searching For Sugar Man quem tentou resgatar Sixto Rodriguez do esquecimento a que os seus discos foram votados quando originalmente editados. Esta (re)descoberta do seu paradeiro em finais de noventas por sul-africanos que o lembravam como o seu herói da contracultura dos anos 70, o não menos importante relacionamento com o público australiano e as reedições que entre 2008 já tinham trazido à era digital os álbuns Cold Fact e Coming From Reality garantiram vias de contacto com um nome que, de facto, durante décadas viveu injustamente silenciado, consequência do estrondoso fracasso comercial de dois discos que, mesmo belíssimos, chegavam numa hora em que as atenções procuravam algo politicamente mais vibrante ou musicalmente diferente…
O filme, que arrebatou o Oscar para Melhor Documentário, transformou contudo o que foram esses primeiros episódios de reencontro de alguns, eventualmente mais atentos, num fenómeno com outras dimensões, fazendo mesmo de Sixto Rodriguez um dos casos da história recente da cultura popular. E o filme era, mais do que a história de um músico perdido, uma reflexão sobre consequências do que era o isolamento em que vivia a África do Sul no auge do apartheid, a banda sonora garantiu então, finalmente, o (re)encontro com uma voz que não merecia o silêncio. Agora, no momento do adeus, nem que pelo impacte tremendo de Searching For Sugar Man, Sixto Rodrigues parte com a certeza de que deixou uma marca na história da música popular.
Texto de Nuno Galopim
Nuno Galopim assinalou as mortes de Robbie Robertson e Sixto Rodriguez nas manhãs da Antena 1. Ouça aqui este momento: