Apesar de haver referências a possíveis experiências de Almada Negreiros em 1913 (filmes de cartões animados) e a filmes publicitários de Luís Nunes para a His Master’s Voice em 1921-22 (contendo eventualmente animação), o facto é que o aparecimento do cinema de animação em Portugal, mesmo que simbolicamente, data de 25 de janeiro de 1923, altura em que é estreado O Pesadelo de António Maria, realizado pelo caricaturista Joaquim Guerreiro. No entanto, o que sobrevive hoje desse filme é uma reconstituição a partir dos desenhos originais numa remontagem feita a partir de 2001 pelo produtor e realizador Paulo Cambraia, um dos principais estudiosos do cinema de animação em Portugal.
O conhecimento da existência do filme ocorreu através de referências em jornais da época e mediante o estabelecimento da relação entre essas referências e os desenhos. Paulo Cambraia conta como tudo começou. “Em janeiro de 1923, os jornais da época, nomeadamente o Diário de Notícias e o Século, anunciavam a peça de teatro de revista Tiro ao Alvo, no Éden Teatro, em Lisboa, em página adequada para esses anúncios. A dada altura surge um quadro novo nessa peça, com o título Fitas Faladas. Os anúncios começaram a mencionar esse novo quadro, e o ‘film’ que o abria. O Diário de Notícias dedicou um pouco mais de atenção ao filme e fez-lhe alguns comentários. Em fevereiro, Tiro ao Alvo estreia-se no Porto, e o filme também. Aí, é o Jornal de Notícias que lhe dá relevo, dedicando-lhe um artigo que viria a ser, em 2001, fundamental para identificar os desenhos, por ter uma caricatura de António Maria”, explica à Antena 1.
No entanto, passado esse momento inicial, o filme caiu no esquecimento e a sua memória só viria a ser recuperada muito mais tarde. O historiador e produtor relembra a história dessa redescoberta: “A memória da sua existência é recuperada por A. J. Ferreira em 1989. Descobriu-o durante as pesquisas que fez para o seu livro Animatógrafos de Lisboa e do Porto, e publicou um artigo sobre ele no jornal A Capital. Entretanto, numa outra realidade, uma pilha de desenhos de autor desconhecido e de origem desconhecida acabou por ir parar às mãos de um alfarrabista, e foram comprados por um colecionador de ilustrações e caricaturas, por volta de 1986. Pensando-se que poderiam ser de uma animação, fizeram-se fotocópias que foram levadas ao Cinanima, que as arquivou.” Entretanto, os desenhos ficaram esquecidos, mas o improvável sucedeu em 2001 por alturas do Porto Capital Europeia da Cultura. “Como parte desse evento é pedido a António Gaio, diretor do Cinanima, que escreva um livro sobre a história da animação portuguesa. É aqui que se vai dar o improvável encontro das várias linhas de tempo em jogo: António Gaio deparou-se, também ele, com o sobejamente conhecido artigo do Jornal de Notícias de 1923, e com a caricatura de António Maria, o que o fez lembrar-se das fotocópias de 1986. Não podia haver dúvidas: os desenhos eram do filme de 1923 e o seu autor era Joaquim Guerreiro”, refere Paulo Cambraia.
A primeira versão da recuperação e remontagem do filme data pois de 2001. Paulo Cambraia explica como se deu esse processo feito de improváveis coincidências: “Em 2001 o Cinanima fez 25 anos e pediu à minha produtora, a Megatoon, para lhes fazer um genérico para o festival, mais um publicitário para anunciar o evento na RTP2. Mais: a Megatoon patrocinava o prémio para o melhor filme português a concurso, e nessa altura eu já andava, desde 1999, a fazer um inventário dos filmes portugueses de animação. Coincidências dentro de coincidências, mas que me colocaram no sítio certo no momento certo, e me permitiram saber da descoberta de António Gaio. Obviamente, propus-me produzir O Pesadelo. A produtora musical Aura Studio, de Fernando Rocha, acrescentou-lhe um magnífico improviso ao piano, pelo maestro António Victorino d’Almeida. O resultado foi apresentado a 10 de novembro de 2001 numa sala do Centro Multimeios de Espinho durante o Cinanima.” Porém, mais tarde, Paulo Cambraia fez uma nova remontagem usando fotografias digitais que obteve a partir dos desenhos originais, acrescentando ainda um bloco inicial revisto (a apresentação que antecede a reconstituição).
Sem a película original, dada como desaparecida, o filme recuperado é necessariamente uma interpretação, como defende o realizador. “Não se trata de um restauro; trata-se de uma interpretação minha face aos dados existentes e à minha experiência em animação”, adianta, realçando que a reconstituição teve algumas (poucas) ajudas em anotações escritas em alguns desenhos. E destaca o papel fulcral da sua experiência em ambientes de filmes de animação publicitários. “Como trabalhei profissionalmente em ambientes de filmes de animação publicitários durante quase duas décadas, usei a minha experiência para decifrar as anotações e construir, com o que tinha, uma narrativa coerente com as oito legendas manuscritas”, refere, acrescentando que essas legendas não faziam parte do filme original. “Eram lidas ao vivo por um ator, talvez escondido atrás do ecrã. Tomei a liberdade de as converter em intertítulos, para os quais criei uma cercadura, um pouco como se fazia naquelas épocas”, explica Paulo Cambraia.
O filme é claramente uma sátira política e um epigrama que visa o político da Primeira República António Maria da Silva, uma figura governativa “cuja ânsia de dominar a política portuguesa e de ser a primeira figura do seu partido o levou a assumir atitudes que lhe alienaram as simpatias populares”. Paulo Cambraia elucida o ambiente em que surgiu, explicando que se enquadra no “contexto do teatro de revista à portuguesa, um género teatral de crítica social”, e notando a ironia de “o mais antigo filme português de animação que se conhece não ter surgido num ambiente cinematográfico, mas sim… num contexto de teatro de revista!”. Porém, ainda que possa ser relativamente simbólica a data do centenário do cinema de animação português, uma coisa é certa: “O Pesadelo de António Maria é o primeiro filme português de animação desenhada sobre papel opaco. Esta técnica obriga a decalcar os fundos de um desenho para o desenho seguinte, tal como Joaquim Guerreiro fez. E tal como, por exemplo, se fez em Gertie, the Dinosaur (1914, Winsor McCay, EUA). Uma trabalheira, decalcar os fundos. Mais ninguém se atreveu a usar tal técnica de desenho animado aqui em Portugal, nem antes nem depois”, conclui.
Paulo Cambraia passou, esta quarta-feira (25), pelo Programa da Manhã da Antena 1. Veja aqui a conversa com Mónica Mendes:
Texto de Nuno Camacho
A animação portuguesa marca presença na Antena 1, ao longo de toda esta quarta-feira (25).
- Pelas 14h40, Noémia Gonçalves recebe o entusiasta e divulgador Fernando Galrito, fundador do Festival de Animação de Lisboa – MONSTRA.
- Pelas 16h20, Filomena Crespo estará à conversa com os realizadores João Gonzalez e Laura Gonçalves. Ambos chegaram à lista de finalistas para o Óscar de melhor curta de animação, e Ice Merchants, de Gonzalez, tornou-se mesmo o primeiro filme português de sempre a conseguir uma nomeação nos Óscares.