José de Almada Negreiros é o epítome do artista polifacetado que experimentou todas as formas de expressão artística (já o reputaram até de artista “multimédia” antes do tempo). Pintor, desenhador, vitralista, poeta, romancista, ensaísta, crítico de arte, conferencista, dramaturgo, grafista e até bailarino ocasional, Almada Negreiros pulverizou a sua atividade por múltiplos campos, num apreço por todas as artes que fez dele um “artista total”. Porém, embora avesso à ideia de especialização artística, reconheceu que o seu maior interesse sempre foi o Espetáculo.
Nascido na Fazenda Saudade, freguesia da Trindade, na ilha de São Tomé, a 7 de abril de 1893, José Sobral de Almada Negreiros era filho primogénito do tenente de cavalaria António Lobo de Almada Negreiros, administrador do concelho de S. Tomé e escritor e jornalista natural de Aljustrel, e de Elvira Freire Sobral, natural da ilha, de quem herdou o sangue africano. Foi educado no Colégio Jesuíta de Campolide, e mais tarde, após o regime republicano encerrar esta instituição, no Liceu de Coimbra e na Escola Internacional de Lisboa (que tinha um ensino mais moderno e onde lhe facultaram um espaço que lhe serviu de oficina). Com 18 anos, Almada Negreiros estreia-se como desenhador humorista (com um primeiro desenho na revista A Sátira), participando, em 1912 e 1913, nos I e II Salões dos Humoristas Portugueses, e colaborando também com desenhos para várias publicações. Em 1913, pinta os seus primeiros óleos, para a Alfaiataria Cunha, e realiza também a primeira exposição individual, apresentando cerca de 90 desenhos na Escola Internacional de Lisboa. É nessa altura que conhece Fernando Pessoa, que havia escrito uma crítica à exposição na revista A Águia. Em março de 1914, publica o seu primeiro poema, e no ano seguinte colabora no primeiro número (dos dois únicos que teve) da revista modernista Orpheu, ilustrando também o número espécime da revista Contemporânea. Neste mesmo ano, escreve a novela A Engomadeira, publicada só em 1917 e na qual aplica o interseccionismo (processo criativo criado pelo autor de A Mensagem). No ano seguinte, chega a Portugal o casal de pintores orfistas Robert e Sonia Delaunay, com o qual manterá uma estreita relação.
Apesar de ter sido, por pouco tempo, diretor artístico de um jornal humorístico de tendências monárquicas, só em 1915 é que Almada ganha notoriedade com o hoje mítico Manifesto Anti-Dantas (em que zurze com ironia o escritor Júlio Dantas, exemplo do conservadorismo vigente, após este desprezar os autores da Orpheu com a justificação de que seriam pessoas sem juízo). Depois disso, realiza a sua segunda exposição individual, na Galeria das Artes de José Pacheco, em setembro de 1916, já distante do humorismo dos salões, mas também a conferência Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX. Como bandeira da modernidade e da luta contra o passadismo, Almada Negreiros assume, com Santa Rita Pintor, e de modo provocador, o rótulo de “futurista”. Nesse ano, publica ainda a novela K4 Quadrado Azul, que inspiraria o quadro homónimo de Eduardo Viana. Após dois anos em Paris em que vive um pouco à margem da cena artística, regressa a Lisboa, onde realiza a terceira exposição individual no Teatro de São Carlos, mostrando desenhos feitos na capital francesa. Nesta ocasião, aproveita para anunciar A Invenção do Dia Claro, um conjunto de máximas, aforismos e parábolas.
Nos anos 20, publica a peça Pierrot e Arlequim e começa a escrever Nome de Guerra, colaborando também com as revistas Contemporânea, Athena e Presença, assim como com o Diário de Notícias e o Sempre Fixe. Ao mesmo tempo, pinta Autorretrato num Grupo e Banhistas para a Brasileira do Chiado e Nu Feminino para o Bristol Club. Posteriormente, vive cinco anos em Madrid (1927-32), onde se envolve ativamente na cena artística e literária. Em 1934 casa-se com a pintora Sarah Affonso e, com uma situação financeira mais consolidada graças às encomendas oficiais que começa a receber, dá continuidade, agora de forma mais individual, a um percurso que o levará em direção à consagração. Por essa altura, começa os estudos para os vitrais a colocar na Igreja de Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa (que conclui em 1938), dando sequência a uma já longa colaboração com a “política do espírito” de António Ferro, que culminará, após o Secretariado da Propaganda Nacional organizar a exposição Almada – Trinta Anos de Desenho e o convidar a participar em exposições no Rio de Janeiro, com a atribuição, em 1942, do Prémio Columbano. De 1943 a 1948, realiza os frescos das Gares Marítimas de Alcântara e Rocha do Conde de Óbidos, sendo-lhe atribuído em 1946 o Prémio Domingos Sequeira. Desenha ainda os vitrais da Igreja do Santo Condestável, em Campo de Ourique, e regressa à pintura em 1954 com o Retrato de Fernando Pessoa.
No final dos anos 50, a atividade do artista incide na decoração de obras de arquitetura, tais como os painéis para o Bloco das Águas Livres (1956), a decoração das fachadas dos edifícios da Cidade Universitária (1957) ou cartões de tapeçaria para a Exposição de Lausanne, o Tribunal de Contas e o Hotel de Santa Luzia, em Viana do Castelo (1958), e para o Palácio da Justiça de Aveiro (1962). Em 1969 realiza as suas últimas obras: o painel Começar, no átrio da Fundação Calouste Gulbenkian, e os frescos Verão, na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra. Podem encontrar-se também frescos da sua autoria no antigo edifício do Diário de Notícias, por exemplo. Essencialmente autodidata, Almada Negreiros pertence à plêiade de figuras que mais marcaram a primeira fase do modernismo português. Morreu a 15 de junho de 1970, no Hospital de São Luís dos Franceses, precisamente no mesmo quarto em que morrera Fernando Pessoa.
Texto de Nuno Camacho
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