Revelações recentes tinham chegado com a tranquilidade e candura que lhe eram características. Em finais 2022 o próprio Ryuichi Sakamoto dava-nos conta de uma segunda luta contra uma doença que, anos antes, até conseguira vencer, embora desta vez não parecendo ter pela frente o mesmo horizonte de esperança. Fez então saber que, enquanto o corpo lhe permitisse, iria continuar a criar música, a tocá-la sobretudo ao piano. E, já nos primeiros dias de 2023, um novo (e derradeiro) álbum, a que chamou 12, juntava uma coleção de peças que surgiam com o titulo das datas em que foram criadas, como que representando páginas de um diário que prepara o momento da despedida, que chegou a 28 de março, sendo discretamente comunicada poucos dias depois…
Nascido em 1952, com formação em música feita na Universidade de Tóquio na segunda metade da década de 70 e tendo procurado desde logo explorar tanto as novas possibilidades das emergentes eletrónicas como os espaços da etnomusicologia, Ryuichi Sakamoto conquistou atenções bem cedo, quer através do trabalho feito com a Yellow Magic Orchestra (importante banda pioneira da pop eletrónica), quer num percurso a solo, tendo editado em 1978 primeiros álbuns tanto com o grupo como em nome próprio. Lançado em outubro de 1978, ou seja, um mês antes da estreia em álbum da Yellow Magic Orchestra, Thousand Knives, o primeiro LP de Ryuichi Sakamoto, revelava um talento eclético capaz de coexistir em várias frentes, com evidentes apetites pela exploração de eletrónicas, de caminhos mais experimentais e também pela noção (então ainda na sua génese) de música ambiente. O saciar de visões mais exploratórias do seu segundo disco em nome próprio, B2-Unit, editado também em 1980 (e onde surgiu Riot In Lagos, precursor do electro), levou-o a procurar, para o seu terceiro disco, Left-Handed Dream (titulo internacional) uma lógica de diálogo ainda mais evidente com novas formas e geografias da música popular. Um percurso pop teria então passos marcantes pela frente, dados sobretudo entre as décadas de 80 e 90, passando por discos como Illustrated Musical Encyclopaedia (1984), Neo Geo (1987), Beauty (1989) Heartbeat (1991) ou Sweet Revenge (1994).
Em paralelo a sua obra ia investigando dimensões mais exploratórias, como se escutara em discos como Esperanto (1985) ou Futurista (1986), este último incluindo gravações da voz de Filippo Tommaso Emilio Marinetti, fundador do movimento futurista. Esta dimensão mais experimental teria expressão em vários discos posteriores, entre os quais Chasm (2004). Um outro importante espaço na discografia de Sakamoto corresponde a gravações de música para piano ou ensambles de câmara, em álbuns como 1996 (que recuperava algumas criações para o cinema), BTTB (1999) ou Playing The Piano (2009).
Os primeiros grandes contactos internacionais, um deles na forma de uma colaboração com os Japan (em 1980 na canção Taking Islands in Africa), encetava uma uma colaboração muito regular desde então com David Sylvian. O gosto pela partilha de experiências e pelo trabalho de colaboração, fez com que, além de Sylvian, experimentasse importantes flirts com vozes e formas da canção pop ao lado de Iggy Pop, Thomas Dolby, Holly Johnsson, Roddy Frame ou Yossou N’Dour, entre muitos mais. Mas foi de facto com o então já ex-vocalista dos Japan que aceitou fazer viagens que começaram perto da canção pop e rumaram depois para além das fronteiras dos géneros, num conjunto de ensaios que alargaram possibilidades para a sua música. É sobretudo marcante a canção que ambos criam para a banda sonora de Feliz Natal Mr Lawrence, de Nagisa Oshima (ou seja, Forbidden Colours), filme de 1983 para o qual, além da música, Sakamoto também desempenhou um dos papéis protagonistas, contracenando então com David Bowie. O seu envolvimento com o cinema focou-se todavia mais na arte de criar música para as imagens e narrativas, destacando-se entre outras as suas colaborações com o cineasta Bernardo Bertolucci, para quem trabalhou nos históricos Um Chá No Deserto e O Último Imperador, neste último caso vencendo um Óscar então partilhado com David Byrne e Cong Su. Experiências posteriores, ao lado de figuras como Jacques Morelembaum, Christian Fennez ou Alva Noto, voltaram a mostrar como o fulgor do explorador não escapara ao seu mapa de desafios.
Ryuichi Sakamoto tem uma discografia vasta e nunca deixou de criar musica. Mas na década passada um tempo de longo hiato de novas gravações de estúdio, preenchido sobretudo com composição de música para cinema, fez-se sentir até que, ao cabo de oito anos de silêncio (habitados na verdade por uma batalha clínica contra um tumor na garganta), Sakamoto regressou aos discos em nome próprio com Async (2017) uma obra-prima que propunha sugestões que habitavam as periferias do silêncio.
E havia algo de curioso em comum entre este disco – que podemos descrever como ambient – e um outro que, em meados dos anos 70, levara Brian Eno ao encontro dessa mesma ideia: o silêncio em tempo de convalescença. Numa cama de hospital Eno escutara o que antes nunca ouvira, descobrindo nas periferias do quase nada o tudo que depois resolveu explorar. Também Async surgiu depois de um tempo habitado por silêncios. E entre o piano e os acontecimentos manipulados, foi de silêncios que viveram os instantes que se fixaram nas filigranas de acontecimentos que Sakamoto desenhou neste seu magnífico disco de regresso.
No ano passado, o aparecimento do disco de tributo a Ryuichi Sakamoto não foi criado como uma forma de antecipar, ainda em vida, um momento de homenagem (apesar de ter surgido já depois de sabido que uma nova batalha com o cancro estava em marcha). Na verdade este projeto estava já em curso bem antes de sabermos do estado de saúde do músico japonês e, na verdade, esta reunião de novas abordagens à sua música surgiu de um facto de calendário. É que, em 2022, Ryuichi Sakamoto completava 70 anos de vida. E esta viagem de ida e volta à sua música surgia, assim, para assinalar este momento. O alinhamento juntou então uma série de nomes que com ele já antes tinham colaborado (como David Sylvian, Alva Noto, Cornelius e Fennesz), acrescentava outros que o tinham como referência maior (Thundercat, Devonté Hynes, Cinematic Orchestra ou Hildur Guðnadóttir) e ainda figuras que o próprio Sakamoto admirava profundamente (Lim Giong, Gabrial Wek ou 404.zero).
Já em 2023, e editado no dia em que o músico assinalou o seu 71º aniversário, o mais recente e, este sim, último álbum, com o título 12, partiu diretamente dos caminhos sugeridos por Async, aprofundando, numa lógica de diário, incursões solitárias que sugeriam uma reconfortante placidez. Em sintonia com o mood ambiental que desenhara o álbum de 2017, 12 acentuou mais ainda o caráter íntimo e pessoal desta derradeira etapa da obra de Ryuichi Sakamoto. Sem procurar palavras e vozes de outros (em Async havia samples de gravações de David Sylvian ou palavras escritas por Paul Bowles), 12 apresentou Ryuichi Sakamoto entregue ao piano e teclados de sintetizadores, sugerindo linhas, melodias, climas, ambientes, assinado cada composição com a data em que foi criada. Estamos assim perante algo que se aproxima à ideia de um diário no qual, pela música, sem palavras, Ryuichi Sakamoto nos convidava a partilhar estados de alma que nos davam retratos breves sobre de um espírito que, mesmo na iminência de uma despedida anunciada, parecia encarar o presente com um sentido de discreta tranquilidade.
Criadas num arco de tempo entre fevereiro de 2020 e março de 2022, estas doze peças traduzem um corpo final de trabalho no qual Ryuichi Sakamoto, continuou a trabalhar enquanto lhe foi possível. Quem sabe se, depois destas (que terão brevemente lançamento em suporte físico), outras mais composições poderão postumamente chegar aos nossos ouvidos. Para já, e juntamente com Async, este 12 sublinhou um gosto por uma escrita mais íntima, progressivamente menos adornada, tranquila, como que procurando, na linha do horizonte, diluir-se com o silêncio. Silêncio que, depois, caberá a nós que nunca se imponha sobre a obra de um dos mais fascinantes criadores do nosso tempo.