O início de vida dos The Smiths cruza sintomas de paixão pela música e uma série de contrariedades. Johnny Marr (o guitarrista), que tinha conhecido Morrissey num concerto de Patti Smith uns anos antes, visita-o em casa (em maio de 1982). Ambos partilhavam uma admiração pelos New York Dolls e, ao ver a coleção de discos de Morrissey, Johnny Marr encontra ali os Monochrome Set… Eram coincidências a mais para deixar como mera nota de rodapé nas vidas de ambos. Um dia depois Morrissey pergunta a Johnny Marr se quer mesmo criar uma banda (como, no surto de entusiasmo, tinham chegado a levantar na véspera). O sim levou-o, dois dias depois, a um sótão para um primeiro ensaio. Meses depois tinham nome (The Smiths) e, com uma formação ainda em tempo de mutação, um primeiro concerto que sugere caminhos performativos de pendor arty que graduamente, e com a fixação progressiva do quarteto definitivo, transformam num espaço mais clássico, isto sem deixar de dar espaço de manobra em palco para o vocalista. Em 1983, depois de terem passado por um “não” de uma editora maior, encontram casa editorial na Rough Trade, por quem lançam o single de estreia “Hand in Glove”, que surge nos escaparates das lojas precisamente um ano depois da visita do guitarrista à casa do vocalista. Pouco depois estarão a gravar um álbum de estreia, em sessões que decorrem num estúdio aparentemente sem a ventilação necessária numa cave londrina… Calor, desconforto, instrumentos por vezes desafinados… E, ao que parece sob falta de entusiasmo da editora, as sessões gravadas sob a produção de Troy Tate (dos Teardrop Explodes) acabam na gaveta, sendo a banda convidada a regravar todo o disco, agora com John Porter (um nome que associamos, por exemplo, ao percurso discográfico dos Roxy Music). Conta-se (e na história dos The Smiths há por vezes várias versões, ou visões, sobre os acontecimentos) que uma vez mais não havia uma satisfação total mas, o disco acabou por surgir nesta segunda forma. E o certo é que fez história.
Convém lembrar que estávamos perante uma proposta em absoluto modo de desfio face ao panorama ao seu redor. A música pop que dominava as atenções era exuberante nas formas, elaborada nos detalhes, meticulosa na produção, muitas vezes exibindo a presença de sintetizadores e outras novas ferramentas digitais… Até mesmo em terreno indie, com nomes como uns Echo & The Bunnymen, que nesse ano editariam “Ocean Rain”, ou uns This Mortal Coil, que se estreavam com “It’ll End In Tears” ou até mesmo os Cocteau Twins, em ano de “Treasure”, o gosto por uma cenografia mais trabalhada surgia em torno das canções. Em contraciclo, a proposta para voz, guitarra, baixo e bateria, ecoando não só memórias dos anos 60 mas também um viço herdado das visões pós-punk, fazia do álbum dos The Smiths algo potencialmente apontado para longe dos alvos das atenções. O certo é que as canções de recorte certeiro na composição, as palavras que vincavam uma escrita bem demarcada (com reflexões pessoais sobre o mundo, o presente, os comportamentos, as sensações), a voz única que lhes dava forma e o corpo que lhe juntava uma coreografia de gestos, fizeram do álbum ao qual chamaram simplesmente “The Smiths” um oásis que saciou a sede de algo diferente, novo, entusiasmante. Com canções inesquecíveis como “Reel Around The Fountain” (que abria o alinhamento), “Pretty Girls Make Graves”, “Hand in Glove” ou “What Difference Does It Make?” (lançado como single poucas semanas antes), “The Smiths” é hoje recordado como um álbum de referência dos anos 80. E abriu um ciclo que, curto, mas repleto de grandes momentos, inscreveu momentos marcantes na história da música popular.