“É o Festival da Canção a renascer”, diz-nos Eládio Clímaco, nome incontornável da RTP, sobre esta edição. Este sábado (2), nos estúdios da RTP, decorreu a segunda semifinal de 2024. Entre as dez canções a concurso, “O Farol”, de Buba Espinho, “Primavera”, de Cristina Clara, “Aceitar”, de No Maka ft. Ana Maria, “Doce Mistério”, de Leo Middea, “Change”, de Silk Nobre e “Criatura”, de Rita Onofre, juntam-se a “Pontos Finais”, de Rita Rocha, “Teorias da Conspiração”, de Nena, “Bem Longe Daqui”, dos Perpétua, “Pelas Costuras”, de João Borsch, “Grito”, de Iolanda, e “Memory”, de Noble. Estes doze nomes disputarão o lugar para representar Portugal em Malmö na Grande Final a 9 de março.
O Festival movimenta-se entre rádio e televisão – e é à caixa mágica que agora reportamos. Não lhe soa familiar a voz-off na RTP1? Se sim, já a terá escutado nas manhãs da RDP Internacional e em emissões especiais da Antena 1, de seu nome Carina Jorge.
Foi na régie de controlo que a encontrámos, cercada de todos os ângulos e feeds que compõem a emissão. Há um segredo para se concentrar no meio de imagens e cablagens: “Às vezes, há muita macacada a acontecer naqueles ecrãs e essa parte também é muito gira. Mas tenho, também eu, uma vozinha no meu ouvido, [a anotadora] Cila Gomes, que faz as contagens: ‘Vais entrar agora, é daqui a dez segundos’. Existe aqui uma força suprema, uma outra voz do além”.
Na TV, a voz off é a exceção, servindo-se apenas do som para ligar todos os momentos, protagonizados por rostos bem conhecidos do grande público, como Sónia Araújo, Jorge Gabriel e Catarina Furtado. O 60.° aniversário proporciona ainda uma oportunidade de reunir, no mesmo estúdio, nomes de todas as eras do Festival – alguns dos quais veteranos.
Em entrevista com a Antena 1, Helena Isabel recorda seis participações no Festival, a solo (justamente com “Canção Solidão” em 1974), enquanto intérprete em 1983, em grupo em 1980 e 1984, e compositora em 1986, ou mesmo a fazer coros. “O país parava para ver o Festival; depois, fez uma grande travessia no deserto. Agora, parece que está a ressurgir e ainda bem, porque é uma boa montra para os novos talentos.”
Eládio Clímaco, que entre 1973 e 2006 conduziu dez edições, identifica “um renascimento” desde a vitória de Salvador Sobral na Eurovisão de 2017. “As pessoas estão a ligar-se novamente ao Festival. É um prazer estarmos aqui, obviamente e tentar por esta malta nova a fazer coisas novas com talento: canções muito boas, letras muito boas, e é isso que eu quero.”
“Vejo uma mudança extraordinária, muito positiva, e sinto-me super honrada e privilegiada por ainda ser lembrada e poder estar aqui nesta nova modalidade”. Quem o declara é Adelaide Ferreira, intérprete da balada vencedora do Festival RTP da Canção 1985, “Penso em Ti (Eu Sei)”. Em conversa com Jorge Fernando, colega de edição e voz de “Umbadá”, confessa que voltar a pisar o palco, desta vez enquanto apresentadora, é intimidante. Jorge discorda: “Apresentar deixa-nos mais à vontade, se nos enganarmos ninguém leva a mal. Agora, dar as notas que a Adelaide dava antigamente e falhá-las… Aí sim, tínhamos um problema.”
Depois do espetáculo na TV, o pós-show na rádio
Regressamos, então, à rádio para o pós-show da Antena 1, onde Noémia Gonçalves e Pedro Miguel Ribeiro recebem Inês Henriques, radialista da Antena 3 e Afonso Cabral, compositor de “Anda Estragar-me os Planos” (2017) e intérprete de “Contraste Mudo”, que interpretou com os You Can’t Win, Charlie Brown em 2023. E, claro, os seis finalistas.
Buba Espinho cresceu a ouvir o pai, Luís Espinho, a partilhar histórias sobre o Festival da Canção e a sua participação com os Green Windows, em 1977, com a canção “Rita, Rita Limão”. Quando foi convidado, fez a associação direta e não haveria outra maneira senão “homenagear a paixão” que o pai lhe passou. Não lhe assiste o nervosismo por ser o primeiro a entrar em palco. “Quando vim para Lisboa cantar nas casas de fado, como era sempre o mais novo abria sempre o serão. Estou acostumado.”
Para Cristina Clara, o Festival foi um momento de estreia em vários sentidos. Escreve há relativamente pouco tempo para canções e, por isso, considerou uma “enorme honra” ter sido convidada. A canção, com música do cabo-verdeano Jon Luz, surgiu de uma pesquisa profunda que fundiu o fado à morna.
Leo Middea não é estranho aos palcos (já partilhou um com Afonso Cabral, que relembrou com carinho uma noite de concertos no Titanic Sur Mer). “Quis preencher este palco com o corpo inteiro, principalmente por estar sozinho. Como não é um concerto, tem de parecer que entras com o sangue quente”. “Fake it ‘till you make it“, como diz Inês Henriques.
Para os No Maka, a decisão mais difícil foi perceber o que trariam para o Festival. “A nossa música normalmente tem mais ritmo, é mais acelerada. Quisemos aproveitar para fazer o inverso daquilo que as pessoas estão habituados a ouvir de nós, e foi o universo pop que quisemos percorrer”. Para Duarte Carvalho e Emanuel Oliveira, talvez mais conhecidos como DJs, “tinha de ser esta música, e tinha de ser com a Ana Maria.”
As canções foram escritas para o Festival ou já existiam? As respostas dos últimos dois finalistas, Rita Onofre e Silk Nobre, variam. “Criatura” já seria o meu próximo single, mas a estética acabou por se revelar diferente do caminho que estava a tomar. A canção fez mesmo sentido neste palco, neste momento. Aqui, decidi levar a minha avante, sozinha até ao fim”.
Por outro lado, Silk Nobre fez, em casa, o seu próprio “festival” para escolher a música que traria. Ganhou “Change” que, se pudesse, receberia em palco um tratamento ainda mais grandioso: “Traria o mundo inteiro para dentro do palco, um coro, mais dançarinos, uma grande banda. Misturar a tragédia grega com o universo gospel, já que esta música é uma espécie de rapsódia, um apelo. Não podia ignorar a oportunidade de estar no Festival para tentar passar a minha mensagem.”
O Festival da Canção continua a ser reflexo da atualidade
Do ensaio à cerimónia, passando pela conferência de imprensa, muitos subscrevem a noção do Festival como espelho do país – sobretudo como celebração da multiculturalidade. “Vivemos um momento muito interessante: hoje em dia, discute-se muito o conceito do que é a música portuguesa. Se sempre foi difícil de definir, agora, com toda a circulação, é ainda mais difícil. Há uma mistura muito grande de influências”, diz-nos a etnomusicóloga Sofia Vieira Lopes, co-autora do podcast Antena 1 “Quis Saber Quem Sou” (sobre como a história do Festival se cruza como a história do país). Cristina Clara, intérprete de “Primavera”, cantão composta pelo cabo-verdiano Jon Luz, felicita o Festival por refletir um país onde a música vibra pela mistura: “A música popular é feita de várias culturas, [e agregá-las] é uma função do Festival.”
Na segunda semifinal ouvimos o português do Brasil de Leo Middea, o crioulo em “Primavera”, o changana que ouvimos na voz de Maria João. A propósito da diversidade, na conferência de imprensa surgiu, novamente, o nome de Sara Tavares. Huca, intérprete de “Pé de Choro”, canção que homenageia a artista, relembra como o seu trabalho “foi fulcral no panorama português para mostrar que estas sonoridades fazem parte da pluralidade da música portuguesa.”
“Quando as câmaras desligam [na Green Room], é uma competição, mas muito singular, em que todo o mundo quer ser amigo de todo o mundo”, diz-nos o repórter da Green Room, o maranhense Wandson Lisboa.
A “cabeça da delegação portuguesa”, Carla Bugalho, revela que este ambiente é partilhado também na Eurovisão: “É sempre uma experiência diferente, mas temos tido a possibilidade de criar laços de família com os concorrentes, e não só com os nacionais. É muito gratificante ver como se produz o Festival da Eurovisão de fio a pavio”.
Vive-se pelos corredores dos bastidores o mesmo ambiente de companheirismo da primeira semifinal; para estes concorrentes, o papel da música é “consertar”, unindo as pessoas sobre a música, coisas que para eles “é sagrada”. Por isso, o espírito de partilha e o Festival enquanto “montra” para mostrar o que se faz no país foram características louvadas transversalmente pelos artistas na conferência de imprensa.
“Silêncio e Tanta Gente” de Maria Guinot e o cinquentenário da carreira de Herman José
Em 1984, a greve dos músicos obrigou a um Festival muito diferente. Pela primeira vez em 20 anos, os instrumentais foram tocados em playback — exceto numa canção. Maria Guinot sentava-se ao piano para tocar e cantar “Silêncio e Tanta Gente”: “[Guinot] achou que poderia ser uma “deslealdade” tocar os playbacks que os músicos teriam gravado, até porque eles reivindicavam maior rendimento por cada sessão de gravação”, explica-nos Sofia Vieira Lopes.
40 anos depois, o Festival da Canção presta a devida homenagem a uma “canção intemporal” na voz de Milhanas (que esteve em competição em 2022 com “Corpo de Mulher”), com arranjo de Agir. “É uma canção com uma mensagem intemporal. A Milhanas conseguiu trazer o seu toque pessoal sem desvirtuar a canção. A simplicidade da canção está lá, mas a forma que ela interpreta traz um quê de sui generis, que mostra que a canção faz sentido em qualquer dos tempos”.
Também intemporal é o “Verdadeiro Artista”, Herman José, que trouxe o humor ao Festival com um pout pourri das canções da sua carreira, desde “Sr. Feliz e Sr. Contente”, ao genérico de “O Tal Canal”, mostrando um Festival que também sabe brincar com os tempos e consigo próprio.