1.
Já passou uma semana e só agora consegui oferecer uma trégua ao silêncio.
Vejo uma fotografia dos dois, felizes, bonitos, jovens, imortais.
Nuno e Manuela sorriam de amor e futuro no princípio do seu princípio. Uma relação de mais de 50 anos feita de cumplicidade, de admiração mútua, de saudade permanente (mesmo quando estavam juntos).
Nuno escreveu num poema que fazia por chegar a casa primeiro do que ela apenas para a ver chegar.
2.
Morreu Nuno Júdice, o meu poeta preferido entre todos os vivos.
Um dia perguntei-lhe sobre o paradoxo.
Fi-lo rir, o que me envaideceu.
Perguntei-lhe a razão para que a sua poesia fosse tão impessoal quando era jovem e feliz nas fotografias. E tão íntima e atenta aos pormenores do mundo real quando deixou de ser jovem e deixou de parecer feliz nas fotografias.
3.
Nuno Júdice era um gigante frágil e humano.
Um dia contou-me de uma viagem a Paris com Luís Miguel Cintra, os dois adolescentes, cultos e disponíveis para mudar o mundo e gritar palavras de ordem.
Nuno era isso.
Cantava Brel e Piaf, lia bibliotecas e mudou-se para a rua nos dias de Abril.
Conheceu Manuela no curso de Filologia.
Ela era viva.
Decidida.
Apaixonada.
Os dois embarcaram numa viagem de tantos portos.
Ele a escrever poemas.
A somar prémios.
A influenciar jovens escritores, a nunca recusar convites para estar, para falar, para fazer a sua parte.
Ela a produzir.
A dirigir projetos.
A mexer mundos e fundos pelo reconhecimento da literatura portuguesa, poucos terão feito tanto pelos nossos escritores contemporâneos.
Cada um na sua estrada, mas sempre juntos e a comer torradas ao pequeno-almoço. A gostarem de experimentar novas compotas e novos queijos e novos vinhos e novos poetas e novas esperanças.
Nuno já não está.
A luz que ele sempre viu na escuridão engoliu por fim a escuridão.
Um beijo, Manuela Júdice.
Que sorte a tua.
Texto e programa de Luís Osório
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