Em tempos corria o mito que, a dada altura, Kurt Cobain teria dormido numa ponte sobre o rio Wishkah, em Aberdeen (Washington), a mesma junto à qual há agora um monumento em sua homenagem. A mesma a que alude o primeiro verso de “Something In The Way”, a canção que encerra o alinhamento de “Nevermind” . Canção pessoal, suave, com um arranjo onde as cordas juntam um calor ao desencantamento de que se fala, é um dos mais incríveis exemplos de grande escrita e composição de Cobain.
O mito, que a canção alimentou como banda sonora, perdurou até que a (muito recomendável) biografia assinada por Charles Cross – “Heavier Than Heaven” – explicou que, se Kurt tivesse dormido por baixo da ponte, teria sido levado pela corrente na maré alta. Na verdade, por esta altura, dormia ou em casas de amigos ou nas salas de espera de hospitais, deixando os seus pertences guardados numa caixa de cartão, onde alguém a pudesse guardar. O livro, que podemos evocar neste dia em que se assinala a passagem de 30 anos sobre o seu desaparecimento, pode juntar-se a um outro, também de Charles Cross, “Here We Are Now: The Lasting Impact of Kurt Cobain”, um pequeno volume que observa o legado que o músico deixou, ora evocando o modo como a sua cidade de Aberdeen, na qual nasceu a 20 de fevereiro de 1967, foi criando uma relação com a sua memória e a dos seus admiradores. E a coisa não foi imediata já que data de 2004 um artigo num jornal local que então dava voz a um conjunto de estudantes que questionavam a ausência, até então, de uma condigna homenagem ao músico na cidade que ele mesmo havia colocado no mapa. Até aí dele não haveria em Aberdeen senão os documentos que qualquer cidadão poderia ter registado ou os autos de polícia que recordavam um graffiti por ele pintado quando era adolescente ou uma outra detenção, essa por posse de álcool. Foi então que surgiu um comité que, arregaçando as mangas, começou por colocar à entrada da cidade a mítica placa que ainda ali encontramos e que diz, a cada forasteiro que ali chega: “come as you are”. Tal como Kurt Cobain nos cantava na mítica canção com o mesmo título. Pouco depois surgiu, também ali, o Kurt Cobain Memorial Park, espaço que deve a sua criação à dedicação de um velho fã de Elvis Presley que partilhava com o próprio uma história de vida familiar algo traumática. Foi ele quem limpou as ervas junto à ponte e, mesmo sob olhares céticos da comunidade (como recorda o livro de Charles Cross), acabou mesmo assim por ver um voto favorável, instituindo a criação do parque. E assim, a cidade a quem Cobain havia descrito como “Twin Peaks, mas sem a mesma excitação”, ganhou um lugar no mapa mundo da cultura pop.
“Here We Are Now: The Lasting Impact of Kurt Cobain” dedica páginas a várias expressões do legado de Cobain. E é aí que entra em cena uma reflexão sobre o modo como o seu suicídio foi tomado como ‘case study’, tendo surgido depois novos programas de apoio, campanhas de prevenção. Charles R. Cross acrescenta ainda que, além de Kurt Cobain, nesse mesmo ano foram registados outros 30 574 casos de suicídio nos EUA mas desmonta um mito urbano que chegou a levantar cenários de mimetismo nos dias seguintes aos da notícia do desaparecimento do cantor. De resto, e como o livro nos conta, não se verificou depois de 8 de abril (a data em que o corpo foi encontrado) um pico de suicídios quem em outros casos havia ocorrido. E uma das razões para este facto poderá ter sido o facto de muitas notícias sobre a morte de Kurt Cobain terem juntado aos textos caixas com números de telefone de serviços de apoio e listas de comportamentos que pudessem indiciar eventuais situações de mimetismo.
Trinta anos depois evocamos Kurt Cobain e a América ‘indie’ da qual a sua música emergiu. O episódio desta semana do “Gira Discos” lembra assim não só os Nirvana mas também outros “heróis” da música alternativa norte-americana dos anos 90, entre os quais Kristin Hersh, Eliott Smith, Lisa Germano, Neutral Milk Hotel, Mercury Rev ou Flaming Lips.
Texto de Nuno Galopim
Ouça o “Gira Discos” na Antena 1, de quinta para sexta-feira, após as notícias da meia-noite. Todos os episódios estão disponíveis na RTP Play.