Filomena pousa os sacos das compras diante do repórter Samuel Alemão, do Público, à porta de um dos poucos elevadores que funcionam no lote 544 da antiga Zona J de Marvila. Tantas vezes, no sobe e desce dos dias, é melhor ir pela escada. Tantas vezes, os elevadores da antiga Zona J são como a escada sem corrimão que ampara uns versos de David Mourão-Ferreira: “É uma escada em caracol/ e que não tem corrimão. / Vai a caminho do sol/ mas nunca passa do chão”. Tantas vezes.
Aquele concreto elevador estivera avariado durante mais de ano e meio. Filomena revive, entre suspiros e desabafos, a canseira de um sobe e desce com a triste vida às costas. Nos grandes prédios degradados do bairro, nunca fiando. “Ainda há dois dias”, conta a moradora, “a minha sobrinha e a mãe dela ligaram-me a dizer que ficaram presas neste elevador”. A reportagem recolhe sucessivos testemunhos de um crescente abandono das zonas comuns e do espaço público entre as altas torres do bairro, agora do Condado.
Avelino mora no 12º andar de um lote vizinho onde apenas funciona um dos três elevadores existentes. Queixa-se da empresa que faz a manutenção. Vão lá os técnicos e, uns dias depois, os elevadores encalham. Assim, quando surgem apertos maiores, é o próprio Avelino que desenrasca os vizinhos, graças aos conhecimentos técnicos obtidos durante os muitos anos em que afinou as máquinas de cigarros na Tabaqueira.
Lá do alto dos 14 andares do lote 548 da antiga Zona J, a majestosa Lisboa abre-se em vertigem a pedir o voo de um drone ou de uma gaivota. O antigo afinador das máquinas de cigarros da Tabaqueira poderia ter saído de um verso do grande Ferlinghetti que se rendeu aos elevadores de Lisboa, ao ponto de os referir num poema dedicado a Jorge Palma. “Os elevadores de Lisboa /sobem e descem e descem e sobem desde o início dos tempos/ levando a vida de Lisboa acima e abaixo e abaixo e acima /como as riquezas de Lisboa”.
Do lado da Câmara da capital, alguém levantou, ao repórter Samuel Alemão, um dedo em forma de porém: não se esqueça do vandalismo que grassa no bairro. A Gebalis garante que investiu, nos últimos três anos, só em elevadores, triplicando gastos anteriores, três milhões de euros.
Ao Ferlinghetti, que viu muitas coisas bizarras, não escapou, entretanto, o “homenzinho com olho de peixe” que continua a controlar os elevadores da cidade”.
Filomena suspira, antes de pegar nos sacos das compras. Não lhe falem em elevador social, que ela vai pelas escadas.
O poeta lisboeta dá uma baforada de cachimbo e remata: “Adivinhaste: é a vida/ A escada sem corrimão”.