Yago Álvarez Barba, o editor de economia do jornal El Salto, escreve sobre a tragédia que se abateu sobre a sua comunidade, sobre os seus antigos vizinhos e familiares, em Benetússer. Assim partilha os relatos que não sossegam a sua aflição à distância. Depois do vídeo feito pelo irmão dentro do carro atascado na enxurrada, no polígono de Ribarrroja, ele escuta a voz da sobrinha que conseguiu subir ao terraço para lhe telefonar. Recebe imagens da sua Benetússer afogada num mar de lama e escreve: “Nunca pensei que mi pueblo ia ser foto de capa, por este motivo, no jornal onde trabalho”. Numa passagem subterrânea de Benetússer, resgataram, entretanto, a mulher que esteve três dias dentro de um carro atascado. Estava viva, perdida do mundo no seu próprio povoado, talvez seja conhecida do editor de economia do jornal El Salto, há imagens da mulher resgatada nas televisões pouco antes de a multidão chamar “assassinos!” aos representantes de um poder até então ausente. É isso em Paiporta, outro nome no mapa devastado de Valência, lá vão um rei e uma rainha chapinhando na lama, tantas vozes zangadas e aflitas em redor, nunca tinha visto o rosto de uma rainha salpicado de lama, gritam-lhe e ela responde-lhes, “como é que não hão-de sentir-se asim?”, e a mão cuidada limpa as próprias lágrimas enlameadas.
Eu guardara uma outra imagem retida na lama valenciana. Não já de detritos acumulados, de escombros fantasmáticos, de esculturas montadas por um deus louco com carcaças de automóveis, apenas uma singela fotografia sem rosto de gente ou ruína de prédio. É a imagem captada por Rober Solsona, repórter fotográfico da Europa Press. Ela acompanha dois ou três parágrafos magoados, em desolada caligrafia de lodo e desamparo. Publicada no jornal Voz da Galiza, mostra simplesmente uma boneca de plástico na lama, despida de adereços, uma das pernas partida, ao lado do que poderá ser uma peça de lego. Uma boneca para sempre perdida da ideia de brincadeira.
Rober Solsona é valenciano, nascido num pequeno povoado, Algimia d’Alfara. Encontrei fotos muito interessantes no seu portfolio, antigos verões felizes, rapazes lançando-se do molhe ao mar de Valência, em agosto de 2010. Nesse Verão, ele fixou imagens impressionantes de um concerto do grande Enrique Morente. Quando chegaram os frios registou um curioso pequeno-almoço com viandantes, antes de a manhã romper numa área de serviço. É uma bela palavra, viandante, também existe em português, tal como viageiro. Perdemo-nos das mais belas palavras, vão numa outra enxurrada lenta.
Os dois ou três parágrafos magoados que acompanham a foto de Rober Solsona na Voz da Galiza, são de Mariluz Ferreiro. Explicam-nos que grande parte da água que arrasou Valência desaguou no “paraíso frágil” das lagoas entre as dunas e a praia de El Saler, depositando para-choques, rodas de automóvel, árvores inteiras.
“São restos da nossa Pompeia de barro, Valência”, escreve a jornalista galega. E antevendo o dia em que os alinhamentos noticiosos darão destaque a uma outra geografia, ela sublinha que “este nosso mundo digere em tempo record as piores tragédias, saltando para a casa seguinte do tabuleiro”.
A polícia a cavalo protege um rei e uma rainha, movendo-se no xadrez de peões perdidos de suas casas, num tabuleiro de lama.