1.
Esta manhã o meu filho Afonso estava feliz com o resultado do Sporting.
Deu-me um abraço e perguntou-me se eu ficava triste por ter escolhido ser do Sporting sendo eu do Benfica.
Respondi-lhe o óbvio: claro que não, era só o que mais faltava ele não poder ser o que quisesse ser.
Logo a seguir, depois do pequeno-almoço, enquanto a irmã Benedita, mais pequena, se acabava de arranjar, quis saber das eleições americanas.
Contei-lhe de Trump e da nossa derrota.
O Afonso fez-me então a pergunta impossível: e agora, pai? O que vai acontecer agora?
2.
Falei-lhe de um incêndio na floresta.
Um incêndio devastador que levou a que milhares de animais fugissem das chamas.
Macacos.
Leões.
Tigres.
Elefantes.
Jiboias.
Zebras.
Girafas.
Humanos.
3.
Todos em fuga, todos em tumulto, todos a correr o mais rápido que conseguiam.
Escutavam-se gritos dilacerantes.
Muitos não conseguiam andar mais e eram deixados ficar para trás, ninguém esperava por ninguém.
O leão voltara a ser o rei da selva e comportava-se como tal.
Era ele, de juba altiva, que organizava a fuga dos que podiam, dos mais fortes, dos mais capazes, dos que corriam mais do que as chamas.
4.
Entretanto um bando de passarinhos, não mais do que cem ou duzentos, voavam loucamente em direção às chamas.
Voavam como se estivessem cegos, hipnotizados com as labaredas, pequenos suicidas aparentemente inconscientes do que significa sobreviver.
Cada um dos passarinhos voava rápida e ordenadamente em direção ao abismo com uma gotinha de água no bico.
5.
O leão não queria acreditar no que os seus olhos viam.
Gritou então no seu modo de gritar, um grito suficientemente forte para alcançar o céu dos passarinhos que, respeitando a hierarquia, pararam para o ouvir.
O leão queria saber o que lhes passava pela cabeça, por que não fugiam das chamas, por que raio tinham uma gotinha de água no bico, o que estavam os passarinhos a fazer?
Foi aí que eles, todos ao mesmo tempo para que a sua voz se ouvisse, lhe responderam.
“Fazemos o que podemos”.
6.
O Afonso foi para a escola e levou como trabalho de casa a resposta a esta parábola.
Donald Trump ganhou as eleições americanas.
E mais nada pode ser dito hoje.
Ou amanhã ou depois de amanhã.
A partir de agora o jogo tornou-se ainda mais imprevisível.
Mas Trump sabe que por cada fogo ateado haverá sempre passarinhos prontos a fazer o que for preciso para que a sua gotinha de água possa chegar à ferida que agora nos ameaça devorar.
Texto e programa de Luís Osório
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