Já tinha lido no Jornal do Fundão que, neste arranque de novembro, “a azeitona faz triplicar a população em Malpica do Tejo”. A aldeia de Castelo Branco acolhe os que regressam para varejar as oliveiras da família. O mesmo se passa nos tantos povoados em redor. Na manhã de sábado, retive a imagem de uma longa fila de carrinhas de caixa aberta carregadas de azeitona, à porta do lagar, em São Miguel de Acha. Ou foi em Aldeia do Bispo? Tantos os nomes que retive na lenta revisitação de lugares há muito guardados apenas no mapa mais íntimo, ao longo da manhã e em parte da tarde, fazendo horas para a apresentação do romance “O Tribunal das Almas, os Espiões de Deus e as Fogueiras” que Fernando Paulouro das Neves acaba de editar na Guerra e Paz. Quando a noite pousar, depois do bacalhau na Hermínia, estará cheia a sala do Casino Fundanense, Lavacolhos fará soar os bombos diante dos inquisidores, se for necessário. E não foi. Mas é ainda manhã de sábado e deixo-me levar pelos caminhos sob um sol manso: Penamacor anuncia já o seu madeiro, Monsanto à vista, tomo o sentido de Medelim e de Proença-a-Velha, desta vez não compro queijo na Lardosa, nem no mercado de Alcains, a voz de meu pai canta dentro da minha cabeça uma moda antiga, “a azeitona já está preta, já se pode armar aos tordos”.
Entro em Castelo Branco com um programa bem definido: almoço breve e a tarde no Jardim do Paço onde sempre acredito que o poeta António Salvado continua a conversar com as estátuas dos reis sob o olhar comovido de José Manuel Castanheira que estará na roda da mesa dos amigos de Paulouro a escutar as andanças do ficcionista até à descoberta dos atalhos da vida de Martinho Pessoa, antepassado do poeta cuja relação com o Fundão fora aflorada num texto de Arnaldo Saraiva nos anos 80.
Fernando Paulouro das Neves acalentou longamente a saga deste encontro com uma personagem tão exaltante como a de Martinho Pessoa, beirão do Fundão, judeu perseguido por honrar convicções, fugido aos “espiões de Deus” para um Brasil onde a vida não foram favas contadas, oh que lindo chapéu preto, e por isso regressa aos lugares onde, por estes dias, os filhos da terra varejam as oliveiras da família, cuidando que não lhe hão-de colocar, desta vez, a carocha na cabeça.
Incansável labor, o de Fernando Paulouro das Neves, entretecendo numa escrita admirável as memórias de Martinho, o pai de Martinho legendando a água caída na seca planura idanhense com palavras que sabiam a pão: “Deus choveu”. E o romance nos leva, nas páginas iniciais, pelos campos de Idanha que encheram de luz, este sábado, os meus olhos. Por estes campos cresceu, também, como esteva maligna, a baba denunciante dos caçadores de cristãos-novos, esse lastro de tempos de infâmia com as suas fogueiras purificadoras. Os repuxos do parque da cidade sacodem a tarde como chicotes, enquanto retenho a memória daquele que há-de perecer na fogueira do Rossio, diante de um rei que não suspende o riso. As fogueiras de homens eram “teatro divino”, lembra o ficcionista.
Fernando Paulouro das Neves retém o pensamento de Martinho: “O Santo Ofício queima homens e livros”. Vamos por este romance como se varejássemos a nossa própria história ferida. É uma ferida funda que nunca cicatriza.