Madrugada alta, Carina Jorge despede-se dos ouvintes aos quais fizera companhia, partilhando canções e palavras sorridentes. “Despeço-me, por hoje. Às cinco, José Candeias toma conta da nave espacial”. É uma bela fórmula, Carina.
A essa hora, a segunda circular está cheia de luzes. Faróis por vezes demasiado agrestes nos retrovisores, traços contínuos velozmente derrubados, astronautas de um chão instável afirmando um poder efémero no asfalto.
José Candeias alumia o mundo conversando, fazendo da rádio um vasto rossio de histórias. Ele é o comandante da nave-rádio, acolhendo e escutando nautas perdidos no vasto mapa. É um radionauta que sabe do mundo muito mais do que rios e montanhas, os sotaques, a fala humana. Sob o seu comando assente numa empatia calorosa, humanas criaturas sobem à grande nave das vozes e fazem florir o dia. Uns transportam pão saído do forno, outros falam de um país distante, as suas vozes sacodem o frio como se esfregassem as mãos dentro da garganta, não há conversa mole, sacodem o frio, aconchegam o dia que nasce.
Quando a segunda circular ganha o ritmo de um formigueiro lento, Candeias entrega os comandos da nave a Ricardo Soares. A nave revela agora a complexa organização da colmeia, está povoada de vozes que parecem ligadas a um olhar agudo e meticuloso, operando as suas múltiplas disciplinas, da política ao desporto, do humor à fluidez do trânsito, do estado da guerra à ousadia artística.
Anteontem, estava Ricardo Soares ao comando da nave espacial, a jovem radionauta Inês Martins zarpou no seu mini astromóvel, a vida de repórter é um vaivém espacial, é um vaivém especial, e entre o ir e o vir ela encontrou dois jovens estudantes de Ciências e Tecnologia, pensamento mais calhado a velocidades supersónicas, encalhados na saga diária de seis transportes entre casa e escola, entre Alcochete e o Monte de Caparica, com duas travessias do mesmo rio pelo meio. Inês estabeleceu com eles, gravador ligado, uma exemplar narrativa radiofónica. Em breves minutos, ela foi além da descrição rigorosa de uma espécie de castigo matinal suportado por Manuel e por Henrique. Porque não apenas mediu o tempo e o modo de uma viagem longa e cansativa, que obriga ao transbordo sucessivo entre seis meios de transporte todas as manhãs e todas as tardes, conversou com os jovens usando, mais do que a mesma língua, a mesma linguagem.
Ligados à grande nave espacial, no lento formigueiro da hora de ponta ou no alto de uma serra diante do mar, viajámos com Inês em camioneta pela Vasco da Gama até ao Oriente, quarenta minutos sobrevoando um rio e o antes e o depois das margens, e logo o comboio de Oriente a Sete Rios. – E agora? – pergunta Inês. -Agora, responde um dos jovens, comboio da Fertagus em direção a Coina, saída no Pragal, onde apanhamos o metro para a Faculdade. Ao todo, duas horas de caminho, o mesmo que ir de Alcochete a Faro, diz a repórter. Um pouco mais e damos, na nave espacial, a volta ao mundo. A nave espacial das vozes junta, num mesmo rossio, todos os fusos horários, ajuda-nos a encontrar aquilo a que João Guimarães Rosa chamou a terceira margem do rio.
Enquanto Candeias e Soares comandam a nave espacial, possam os jovens estudantes que usam duas pontes sobre o mesmo rio chegar à terceira margem, a do espanto e do conhecimento do mundo. E que Carina e Inês não percam a ousadia de dar nome a isso.