1.
Um dos meus acontecimentos do ano, um dos que mais me impressionaram neste 2024, foi a exposição de Eduardo Gageiro na Cordoaria, em Lisboa.
Quase 200 fotografias em que vi muito do que precisava de saber sobre o país nestes últimos 70 anos.
Nas imagens do grande fotógrafo português vi o Estado Novo, vi a revolução, as desilusões, o rosto da pobreza, a ingenuidade da infância, a morte e a vida.
2.
E Eduardo Gageiro estava lá.
Esteve lá quase todos os dias a fazer visitas guiadas.
A explicar como as fotografias foram tiradas, em que circunstâncias e com que dificuldades.
Foi das coisas mais bonitas do meu ano.
Vê-lo aos 89 anos a cumprimentar com um enorme sorriso todos os que entravam para ver as suas fotografias.
Vê-lo como se fosse um miúdo feliz por poder receber pessoas curiosas, como se fosse um fotógrafo acabado de começar, um jovem sequioso de oportunidades.
Vê-lo como se voltasse a ser o miúdo que trabalhava na casa de pasto do pai, em Sacavém. O miúdo que vendia copos de vinhos tinto tirados da pipa e atirava serradura para limpar o chão ao fim do dia. O miúdo que aquecia as marmitas dos trabalhadores da fábrica de loiças em frente, a fábrica para onde foi trabalhar aos 11 anos e onde conheceu um operário que lhe ensinou a tirar fotografias.
3.
Eduardo foi aplaudido pelo mundo por ter tirado a única fotografia conhecida dos palestinianos que assassinaram atletas israelitas nos Jogos Olímpicos de Munique, de 1972.
E foi o mais jovem dos fotógrafos a ver uma imagem sua publicada no Diário de Notícias. Tinha 12 anos e viu destacada uma fotografia dos trabalhadores a saírem da fábrica, arqueados, sombrios, descalços.
O seu destino estava escrito.
E cumpriu-se.
4.
Mas tantas décadas depois, Eduardo Gageiro recebeu todas as pessoas na exposição com a paciência que apenas têm os jovens acabados de começar.
Falou-lhes do 25 de Abril e das suas fotografias icónicas.
E sabes uma coisa?
Sabes no que reparei?
No bolso das calças tinha uma pequena máquina fotográfica.
Perguntei-lhe se estava ali por acaso.
E ele respondeu-me que não, que dela nunca se esquecia.
Que não se perdoaria se visse um sorriso diferente dos outros e não o captasse.
5.
Eduardo Gageiro tem 89 anos, mas continua a ser o miúdo que tirou a primeira fotografia em frente à fábrica com uma máquina de plástico.
Continua de olhos abertos e a desejar todos os dias contar-te uma nova história, contar-nos uma nova história com uma pequena máquina que guarda no bolso das calças para que nenhum sorriso ou revolução se perca.
Texto e programa de Luís Osório
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