1.
No dia em que soubemos da morte de Adília Lopes fizemos canja para o jantar.
Uma canja com tudo; frango, coentros, massinhas e naperons na mesa – tudo o que a Ana faz fora da sua profissão, fora da medicina, é influenciado pela poesia de Adília, pelas palavras feitas de um quase nada que é tudo, de fragmentos de vida que são a vida como ela é quando se olha com pureza e sem ressentimento.
2.
Não fui ao velório ou ao funeral, nunca consigo estar quando a urgência do meu silêncio é maior do que o ruído que não consigo evitar em conversas e abraços pesarosos.
A Ana foi e deixou um lápis vermelho aos seus pés, um lápis que nos fora oferecido pela Rita e pelo Raúl, donos da Livraria Culsete, em Setúbal.
3.
Adília Lopes partiu no dia em que a minha mãe faria 75 anos e era única, radicalmente única.
Tento encontrar palavras para te dizer e nenhuma frase é tão boa como a do seu amigo e confidente, José Tolentino de Mendonça que, no dia do seu funeral, a definiu como…
… alguém que das migalhas fazia um banquete.
Impossível dizer melhor.
Alguém que contruiu um banquete das pequenas coisas que costumamos deitar fora, que torcemos o nariz quando nos aparecem, que achamos pertencerem ao passado, que evitamos, que não ficam bem.
De todas essas coisas partidas, a Adília propôs-nos uma hipótese de mundo novo.
Sem maldade.
Sem ostentação.
Sem ego.
4.
Era uma criança grande.
Ou uma mulher criança.
Solitária, mas a precisar de gente à volta.
E de gatos, muitos.
E de naperons, canjas, santinhos e bonecas, palavras que reutilizava tornando-as matéria poética, piroseiras que na sua mão se tornavam icónicas, surpreendentes ou mesmo revolucionárias.
A Adília era a revolução.
Tornou futuro o passado que se lhe colava à pele.
Tornou luz a escuridão e o sofrimento que a amedrontavam.
Tornou sensual a castidade e carnal o pensamento.
Tornou a vida das pessoas comuns incomum.
Como disse Marcelo Rebelo de Sousa, Adília não deitava nada fora.
Incorporava tudo no que era, no que este país é.
Adília era Portugal.