Deu na televisão: um carro eléctrico desgovernado entrou numa pastelaria de Paços de Ferreira. Foi na rua da Memória, li no jornal. O automobilista, atónito: “Não me lembro como aconteceu”.
Lembro-me de os mais antigos dizerem, quando passava um acelera: “Aquele tem a mania que é Fangio”. Fangio era o meu Garrincha ao volante, um semi-deus também de pernas tortas, motivo por que lhe chamavam “El Chueco”. O carro que ele conduzia no ano em que nasci vai dia 1 a leilão. A licitação pode acelerar até aos 50 milhões de euros, o carro é lindo. Já repararam que andei a tomar notas sobre carros estacionados numa qualquer circunstância ao meu olhar surpreendente.
Na verdade, está um carro parado, há várias semanas, no meio da estrada, na travessa da Brigadeira, em Esposende. Não é, sequer outra maneira de dizer “uma pedra no meio do caminho”, apenas uma evidência desconcertante da negligência avulsa. O jornal O Minho publica uma fotografia registada pela Associação Cidadãos de Esposende que ontem denunciou o despreparo. A GNR não conseguiu localizar o proprietário da viatura há várias semanas parada no meio da estrada, na travessa da Brigadeira.
Procurei em vão quem terá sido a brigadeira destacada na toponímia. Já o brigadeiro Custódio César Faria Freire de Andrade, militar com pergaminhos, que chegou a governar, como coronel, a praça de Valença, deu, em Esposende, o bravo nome a uma praça, um largo e uma travessa. Mas ninguém lá deixou, em transgressão tão grosseira, no meio da via pública, um carro várias semanas ao abandono.
Nunca fui ao volante de um Chevrolet pela estrada de Sintra, mas tomo cada um destes carros que estacionam diante da minha atenção desprevenida como um automóvel emprestado para fruir o luar da crónica.
Lembro-me de um poema em que um carro me sobressalta como se alguém o tivesse abandonado no meio da estrada. É o poema “Acordar na rua do Mundo, de Luísa Neto Jorge. Há um quarto e no quarto alguém se pergunta “que dia é hoje”. Um cano rebenta junto ao passeio, o alarme da joalharia começa a tocar, “pombos debicam o azul dos azulejos”, mas o que sacode, a tempos, a minha atenção é aquele verso em que um carro se vai abaixo. “Um carro foi-se abaixo”. É um verso estacionado no meio de uma insónia. Na rua do Mundo que já não existe.
O poema termina com dois versos irresistíveis: “E duma varanda um pingo cai / de um vaso salpicando o fato do bancário”.
O bancário mal estacionado no passeio da rua do Mundo interrompe o meu inesperado passatempo de arrumador de automóveis de jornal.