Este sábado, celebrando os 40 anos de axé music, a cantora e ministra Margareth Menezes, convidou para o palco, em Salvador da Baía, as amigas Daniela Mercury e Ivete Sangalo. E Daniela levou de surpresa Carlinhos Brown.
Margareth não precisava de pôr legenda, mas pôs: “Se eu posso cantar com as minhas amigas, porque hei-de cantar sózinha?”, perguntou ela. É uma boa pergunta, a ministra Dalila Rodrigues bem pode pegar na deixa, no encontro aprazado com a sua homóloga para amanhã, no Recife.
Mas o espectáculo de Margareth e amigas teve os seus quês. Os jornais contam que a dado momento, Daniela Mercury se irritou, em pleno palco, desagradada com a munição. “Estou a ouvir a voz de Maga altíssima e a minha baixa”. O problema de Daniela não vinha do tão alto que escutava a voz de Margareth, mas do tão baixo que a sua lhe chegava, lhe soava, boomerang flácido, sumido entre o vendaval dos instrumentos.
Daniela pedia mais munição de palco, apontava os desníveis em relação à voz da amiga: “A voz dela continua bela, altíssima e a minha baixa”. Não conseguia ouvir a própria voz. Ora, se a cantiga é uma arma, seja a voz a munição. Por isso, ela avisou, o mais alto que pôde: “Vou começar a cantar em braille”.
A grande Adélia Prado, que amanhã vai receber de Dalila o prémio Camões, terá gostado do grito de Daniela, se o tiver escutado. Adélia juntou na bagagem poética versos quentes para tambor e voz. Ela sabe o que é “a pele assaltada de indecisão”, é-lhe, por isso, evidente que a uma cantora seja necessário o toque da própria voz, sem o que a sua voz não tocará ninguém, que uma cantora precisa que a própria voz seja aconchego de pele, que possa banhar-se nela para, com ela, fazer correr um rio. Só assim, mergulhada na máxima munição da própria voz, a voz da cantora poderá transformar-se em veia e músculo e arrepio e suor ou macieza.
Fabricio Carpinejar contou, certa vez, que três dos seus leitores tinham escrito na pele um verso seu, “que me seja permitido desaprender os limites”. Uma Daniela, de Curitiba, tatuou o verso nas costas. Um tal Vagner, de Pelotas, entregou o peito à bala das palavras, Carol, de Porto Alegre, celebrou o verso táctil no peito do pé.
Lá em Salvador, Daniela Mercury pediu coisa parecida quando exigiu mais munição de palco. Pediu a sua voz plena, a concha matricial da sua própria voz, para a tatuar na pele dos que a escutavam. Caso contrário, cantaria em braille.
Pediu que a vestissem só de voz. Disse a si mesma: ganharás o palco com o suor da tua voz.