É um quase nada onde cabe tudo: o projecto “Arrumar a Rua” vai já no terceiro ano e, ao que leio no jornal Região de Leiria, leva por diante um projecto dinamizado pela União de Freguesias de Monte Real e Carvide que trata de dar nova coerência a pequenas coisas com importância, de modo a que as ruas sejam mais aconchego e menos estorvo ou atribulação.
Trata-se de um plano de organização do espaço público, com renovação dos materiais e do grafismo da toponímia, rebaixamento de passeios e repavimentação de modo a facilitar acessibilidades, alargamento de ruas estranguladas por muros ou ruínas de casas antigas, requalificação de mobiliário urbano.
“Arrumar a rua”, não para que fique arrumadinha, antes para que possa acolher ideias que a desarrumem harmoniosamente. Eis como traduzo, ainda que atraiçoando benevolamente o plano que só conheço do jornal. Neste dia em que Famalicão acolhe a peça “Uma rua de cada vez”, de Mariana Correia Pinto, sobre a história da brava mulher que recuperou 12 casas de uma “ilha” do Porto e as defende com unhas e dentes das tentações dos especuladores, atravesso na passadeira para a outra margem e penso que não deveriamos usar impunemente a expressão “ a minha rua”. Na verdade, deveriamos dizer “ a minha rua” quando isso quisesse dizer “ a minha clareira no bosque, o meu jardim encantado, o meu castelo”
Arrumar a rua não é a mesma coisa que arrumar o carro. Arrumar a rua não é uma ideia estacionada no passeio.
Aqui chegado na prosa penso nos versos de Mia Couto chamando para o tempo em que havia ruas. “Ao fim da tarde”, lembra ele no poema “As ruas”, “minha mãe nos convocava:/ era a hora do regresso. / E a rua entrava / connosco em casa”.
Esse é o poema que avisa: “entre casa e mundo / nenhuma porta cabia”.
A notícia que nos traz a esta praceta da conversa, esta notícia sobre um projecto que propõe a arrumação das ruas de Monte Real e Carvide, tem similitude com o processo da prosa, sua arrumação na página. Espalho na folha branca que vou alisando várias propostas de ligação, alinhadas, arrumadas como as ruas de um bairro. Na folha cheia de anotações, faço caminhar palavras desarrumadas, como brinquedos de infância.
Como lembrava Ruy Belo, “ninguém sabe andar na rua como as crianças”.
Possa este projecto levado por diante em Monte Real e Carvide trazer, de novo, às ruas, as crianças tão fechadas nas casas onde a rua não entra senão pelos ecrãs que as hipnotizam.
Arrumar a rua
A rubrica diária de Fernando Alves nas manhãs da Antena 1, para ouvir e ler.
Arrumar a rua
A rubrica diária de Fernando Alves nas manhãs da Antena 1, para ouvir e ler.