Desculpai-me se regresso ao poeta Ferreira Gullar, ainda ontem aqui citado. Faço-o por causa das duas tangerinas que tirei do saco, por volta das cinco e meia da manhã, ao mesmo tempo que, na mesa ao lado, Gonçalo Costa Martins retirava, do saco dele, duas tangerinas semelhantes às minhas na cor, mas menos encorpadas. A coincidência levou-nos a imaginar um jogo de damas ou de xadrez, no qual as peças fossem tangerinas de cores diferentes, talvez azuis as dele, ou verdes; vermelhas ou cor de laranja desmaiado as minhas.
Faço-o acima de tudo para abordar singelamente as questões do método, inspirado no modo como o Imortal da Academia explicou, certa vez, as etapas percorridas até nos brindar com o perfume desse preciso poema intitulado “O cheiro das tangerinas”. Ele explicou que, estando numa sala, sentiu o cheiro de tangerinas, mil vezes experimentado, mas nunca com aquela fragância tão especial. Usou estas precisas palavras: “Aquele cheiro, daquela vez, abriu para mim um mundo que eu não sabia qual era”. E, nesse momento, ele o afirma, Ferreira Gullar saiu da sala para escrever o poema. Abençoada decisão. O resultado foi o que se sabe, aqueles primeiros versos, “Com raras excepções / os minerais não têm cheiro”. É um longo poema de desconcertos: os minerais não respiram e a nada aspiram, ao contrário da trepadeira da casa de São Luís na Maranhão onde o poeta nasceu. “Nunca se acenderá neles” (é outra passagem do poema) “- em sua massa quase eterna – um cheiro de tangerina”.
Ferreira Gullar está a explicar aos seus leitores o método que utilizou para chegar ao poema. Ele diz que não sabia sobre o que iria escrever. Sobre “a tangerina cheirosa”? Há risos na sala. E o poeta explica que pegou na enciclopédia e leu tudo o que encontrou sobre tangerinas. Descobriu que a tangerina é “a laranja da China”. Depois descobriu que “a laranja da China foi levada para a Califórnia”. E eu, lançado a tomar notas numa folha A4, presumo que tal transporte não terá sido
sobrecarregado com tarifas semelhantes às de uma guerra comercial futura, tão de alecrim e manjerona, não fora os estragos. E anoto também, lançado já em consultas de ecrã, mandarina, laranja mimosa, mexerica, manjerica… nomes de gomos sumarentos.
Ferreira Gullar, podeis encontrar no youtube estas suas revelações sobre o método, conta que nessa tarde foi “descobrindo coisas sobre a tangerina, mas o poema não nascia”. E ele mergulhado na enciclopédia, descobrindo coisas que não sabia, sobre o enxofre, o único mineral que tem cheiro, ele surpreendendo-se até chegar à música mais secreta, partindo de um “jovem cheiro / que nada tem da noite do gás metano” até ao cheiro daquela fruta inesperada que solta, fechando o poema, “sua notícia matinal”.
Às sete e meia desta manhã de intenso perfume nos dedos eu fantasiava um tabuleiro de damas ou de xadrez em que as peças fossem tangerinas de cores improváveis. Em vez de comermos metaforicamente torres, cavalos ou rainhas ao adversário, comeríamos literalmente as peças que lhes conquistássemos.
Mas eis que o ecrã, enciclopédia mais à mão, me revela a improvável tangerina, não tanto pelo cheiro, nem sequer pela cor, a tangerina que talvez tenha escapado à pesquisa de Ferreira Gullar: a tangerina montenegrina. Existe, sim. Produz poucas sementes e isso pode dificultar a montenegrização do fruto. A árvore em que é colhida produz frutos tardios, tem “ramos finos e quase sem espinhos”. Assim a encontrei, em página científica, remetendo para o município brasileiro de Montenegro, onde foi descoberta em 1940, resultante de uma mutação espontânea. O método de Ferreira Gullar pode levar-nos a lugares improváveis. Quando isso acontece, ganhamos o dia. Agora, vou despachar a única tangerina que me resta. Boa Páscoa.