O jornal El Pais faz-nos saber que o arquivo do poeta Vicente Aleixandre, prémio Nobel da Literatura em 1977, “envelhece” numa casa de Madrid, guardado em 55 recipientes de plástico.
Todo esse tesouro, explica uma sobrinha do poeta, não é que esteja degradado, apenas está para ali entregue a uma negligência que impediu até agora a sua digitalização bem como o acesso de quantos pretendam estudar a obra do autor de “Retratos com Nome”.
O arquivo adormecido em plástico contém uma quantidade apreciável de manuscritos e a valiosa correspondência do grande poeta nascido em Sevilha em 1898 e que revemos, nas imagens do jornal, ao sol de Velintonia, a casa onde viveu, em Madrid. Ora sozinho, já perto do fim de uma vida marcada por longa doença, cobrindo-se com a capa que sempre usava quando passeava pelo jardim, ora ladeado por outros poetas seus amigos, José Hierro e Carlos Bousoño, a quem Aleixandre (já depois de firmado o testamento em que estabelecia como única herdeira uma sobrinha) quis que fosse doada a sua biblioteca e um quadro que Miró lhe dedicou quando recebeu o Nobel. O contencioso legal segue os seus trâmites enquanto nos 55 recipientes de plástico dormem mais de seis mil documentos, entre eles valiosa correspondência que Aleixandre manteve com outros maiores, Luis Cernuda, Rafael Alberti, Camilo José Cela, Octavio Paz, Ruben Dario, António Machado, Garcia Llorca, ou com a viúva de Miguel Hernandez, aquele que o franquismo matou na prisão, em 42.
Esta notícia reconduz-nos com um misto de melancolia e tristeza à obra deste senhor de “vasto domínio” de versos que tantas vezes nos transportaram, na sempre confiável tradução de José Bento, à “cidade do paraíso”.
Percorrendo os recantos da casa e do jardim a que esta notícia do El Pais me reconduziu, não pude deixar de me lembrar de uma passagem de uma conferência dada por Onésimo Teotónio Almeida, há quase dez anos, na Universidade da Beira Interior, sobre o cânone literário, agora recuperada no livro “Diálogos Lusitanos”, cuja leitura me ocupa por estes dias.
Partilho convosco essa saborosa passagem em que Onésimo subscreve a ideia de que temos necessidade de cânones, ainda que necessariamente abertos e dá como exemplo o caso de um gasolineiro da vila de Povoação, em São Miguel. Conta o professor da Universidade de Brown, ele também micaelense, do Pico da Pedra, que o gasolineiro “interessadíssimo em livros e não tendo ninguém dos seus conhecimentos que o orientasse, pensou que, se um autor é premiado com um Nobel, tem de ser porque é muito bom. Então decidiu ler pelo menos um livro de cada premiado pela Academia Sueca. Através da internet conseguiu obter uma lista, e aos poucos foi adquirindo obras. Tinham de ser em português, a única língua que ele conhece. Só não encontrou tradução de seis”. Felizmente, graças a José Bento, Vicente Aleixandre não era um desses seis.