O grupo Terra Velhinha foi ao Sardoal dinamizar uma “oficina de cana rachada”. Fiz o teste aqui entre a gente boa das notícias. Se vos disser “cana rachada”, de que estarei a falar? E todos à uma, afinados na pronta resposta: “estarás a falar de uma voz desafinada”. Era o que eu diria, voz aguda, agreste como unha gutural a raspar no vidro, voz desafinada.
Ora, a Terra Velhinha é a Azambuja e a cana rachada é um instrumento de percussão muito utilizado na lezíria ribatejana. Já tinha visto em função tocadores deste instrumento, mas não lhe conhecia o nome.
Mas o jornal Médio Tejo chama-nos para a oficina realizada no Sardoal. Está o chão cheio de tambores e de flautas e de canas acabadas de talhar. Já tenho com que entreter os olhos e os outros sentidos. Vou pelo ecrã até ao canavial onde João Paulo Costa, unanimemente considerado um “virtuoso” da cana rachada, escolhe, afaga e talha, a golpes de canivete, a cana pronta para a função. Em poucos minutos está pronto o idiofone que marcará compasso e ritmo das modas da Lezíria.
Estou agora a aprender com a entrevista de Miguel Ouro ao sítio “Portugal num Mapa”, há coisa de cinco anos. Miguel é um dos pilares do projecto Terra Velhinha e fala das canas com uma simplicidade sábia. Palavras de Ouro: “As canas, no canavial, falam com o tocador; por isso o tocador sabe quais as canas que estão prontas para ser tocadas”.
Lembro-me de um poema de Ferreira Gullar, sobre o açúcar com que adoça o café em Ipanema. Esse açúcar, lembra o poema, “veio dos canaviais extensos / que não nascem por acaso / no regaço do vale. / Em lugares distantes onde não há hospital / nem escola, / homens que não sabem ler e morrem de fome / aos 27 anos / plantaram e colheram a cana / que viraria açúcar”.
Não assim estes canaviais de Aveiras de Cima ou da Azambuja. As canas que hão-de ser rachadas com a arte fina da navalha, são canas para o vento, para a batida do vento, castanholas de vento esguias, ao vento dançam, no vento se fazem batida, nas mãos em concha, no corpo feito tambor, chamando para a festa o pote e o cavaquinho.
Entretanto encontro noutra janela de conversa mestre Filipe Carapinha, do grupo de Aveiras de Baixo para o qual fez, com o seu canivete, quase trezentas canas rachadas, com canas que apanhou num caniçal junto a um curso de água. São as melhores para a função, garante o mestre de Aveiras. “A boa irrigação dá canas mais fortes e resistentes”. Mais explica que a cana deve ser retirada do canavial nem muito verde nem muito seca. Só assim será uma cana rachada perfeita. É sabedoria muito próxima daquele que podemos colher no poema de João Cabral de Melo Neto sobre o que o mar, sim, aprende do canavial, e o canavial, sim, aprende do mar. O poema explica, também, o que não aprendem. É como as vozes, as de cana rachada.
Desaprenderam de ser vozes, talvez por vento a mais.