1.
A liberdade também se define pela possibilidade de termos um lugar onde nos possamos fechar.
Trancar-nos por dentro.
Dar duas voltas à chave e depois guardá-la numa terrina de coisas importantes.
2.
A casa define o que somos, como estamos, que parte do caminho percorremos ou do que estamos ou continuamos reféns.
Já escrevi sobre isto.
A casa é um ser vivo, um prolongamento de nós. Se estamos bem quase não precisamos de abrir as luzes porque ela se ilumina,
mas se estamos virados, parece que nos engole com as suas sombras…
…sombras que deixámos de ver quando abandonámos a infância ou a infância nos abandonou a nós.
3.
Não há lugar mais confortável do que a nossa casa quando a vida nos corre bem.
Fazemos planos para novos recantos.
Lugares para os livros, música, quadros.
Alimentamos a casa de bugigangas, como se ela fosse nossa filha ou o que conhecemos de Deus.
Uma cama confortável.
Pratos e talheres, mais uma mesa onde fazemos planos para receber, sofás perfeitos, televisão, despensa, o chão que pisamos.
Chegamos e é a nossa rede, a nossa segurança, o sítio onde construímos a intimidade.
4.
Mas se estamos em guerra, se a vida nos magoa…
…não há lugar mais deplorável do que a casa onde vivemos.
O que era rede passa a ser precipício.
O que era vida passa a ser ausência.
O que era conforto passa a ser enfado.
O que era amor passa a ser raiva e ressentimento.
O que era esperança e vontade de agradar passa a ser desistência.
5.
A casa é o nosso mais perfeito prolongamento.
É o que somos.
O que desejamos ser.
E o que vamos sentindo.
Por vezes, até parece assombrada, mas só quando também o estamos.
Ou enamorada quando o coração nos galopa no sangue.
É mágico.
E incompreensível.
Mas é mesmo assim.
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