1.
Portugal foi apurado para o Mundial e eu quero dizer-te da história de um primo ou sobrinho de Mário Cesariny.
Quando Rui Calafate me contou sobre os dias em que se tornou mais tolerante não fazia ideia de que o poeta e pintor surrealista era seu familiar, um primo ou tio avô ou algo do género.
2.
Sim, o Rui Calafate de que escrevo é o que conheces do comentário político, dos livros sobre liderança e do seu visível e aplaudido rasgo retórico.
Foi jornalista, consultor e assessor político de algumas figuras como Pedro Santana Lopes de quem foi, aliás, bastante próximo.
Depois decidiu ir por outros caminhos e é reconhecido, honra lhe seja feita, como um tipo livre e imprevisível ou imprevisivelmente livre.
3.
Gosto do Rui, mesmo quando não gosto.
É desempoeirado, criativo, provocador, sinto-lhe a falta quando falta, quando não aparece uns dias dá-se pelo ruído da ausência.
Rui é parente de Cesariny, mas tal condição não o influenciou no sentido da tolerância – o milagre da dúvida surgiu-lhe com a morte do pai, também ele Rui, um arquiteto que pintava nas horas livres e sofria com o Sporting como se nunca tivesse deixado de ser um miúdo.
4.
O sofrimento do pai era o do filho.
Cada jogo era vivido com paixão, cada polémica com exasperação, cada penalty não marcado ou golo sofrido era um problema.
Após a invasão do centro de treinos de Alcochete, e da instabilidade dos últimos dias de Bruno de Carvalho, jogaram a final da Taça com o Desportivo das Aves.
O Sporting perdeu escandalosamente e Rui Calafate, a meio do jogo, recebeu um telefonema da mãe a avisar que o pai estava muito mal.
Rui perdeu o pai durante um jogo do Sporting.
5.
E a partir daí deixou, mais do que nunca, a porta entreaberta à dúvida, ao imprevisível, ao respeito pela imensidão do mundo, à defesa da tolerância.
Para quê tantas certezas e tantos absolutos quando tudo pode terminar de um momento para o outro com uma bola que vai à barra e não entra?
Que sentido faz o que não faz sentido algum?
O pai, Rui Cesariny Calafate, seguia tudo o que o filho fazia.
Lia o que escrevia.
Via-o na televisão.
Telefonava-lhe, preocupava-se, sofria.
Era um pai orgulhoso e presente.
Até ao dia 20 de maio de 2018, o último da sua vida, o dia em que morreu a ver a bola.
Rui Calafate tornou-se um outro.
Nesse maio deixou de sofrer como antes.
E nunca mais tornou absolutas as suas opiniões e a própria vida.
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