Prince vivia permanentemente insatisfeito com o trabalho que ia criando. E talvez aí residisse parte do fulgor com que regressava a estúdio para registar novas ideias. Por vezes esse sentido de insatisfação nascia na estrada. E assim foi durante a digressão que se seguiu ao lançamento de Controversy (1981), que era já o seu quarto álbum de originais. Surgiu então uma vontade em renovar o grupo de músicos com quem poderia dar forma a novas canções. E desse desejo nasceu a mais mítica das suas bandas: os Revolution.
As canções, contudo, nasceram uma vez mais de um esforço solitário, durante vários meses, entre a primavera e o verão de 1982, em sessões gravadas no estúdio que Prince tinha montado na cave da sua casa e no qual foi criando um conjunto de canções que revelavam uma progressão face a ideias já experimentadas entre os seus dois últimos álbuns. Uma das principais evidências distintivas das novas canções era a uma presença bem mais notória de uma caixa de ritmos que, usada pontualmente no álbum de 1981, ganhava agora um outro protagonismo, conferindo-lhes um perfil urbano futurista, com alma mais intensa e sintética, vincando o interesse de Prince pela exploração de novas máquinas e novos sons que, desde Dirty Mind, vinham a ganhar cada vez maior preponderância na sua música.
As novas canções foram ganhando forma ao mesmo tempo que ia trabalhando com os The Time e um novo grupo feminino, a que chamaria Vanity 6.
Depois de uma reunião com a editora, na qual mostrou as novas canções, Prince voltou para casa com um pedido de reflexão que o fez pensar: se calhar, tal como acontecera nos imediatamente anteriores Dirty Mind e Controversy, faltava ao novo disco uma canção que pudesse traduzir a alma de todo o álbum. No fundo, algo que pudesse ser apresentado como o seu cartão de visita. Ao regressar a casa, e em apenas um dia, compôs e gravou a canção que possivelmente poderia responder a este pedido. Chamou-lhe 1999. E esse acabaria até por ser também o título do álbum (e também do primeiro single a dele ser extraído).
As canções eram, face às dos discos anteriores, mais extensas. E mostravam uma capacidade em, uma vez sugerido um groove, manter a pulsação viva e ativa para lá das regras mais “clássicas” da duração da canção pop. Ao mesmo tempo, e apesar de uma ainda bem clara presença de heranças colhidas entre o funk e o r&b, os diálogos com as formas da canção pop, assim como uma presença mais visível de guitarras com escola rock, sugeriam uma capacidade em lidar com linguagens que poderiam levar esta música para lá do terreno entre o qual a obra de Prince cativara até ali os seus primeiros seguidores.
E se 1999, o single, não foi na sua primeira edição (em 1982) o êxito esperado, já Little Red Corvette, lançado na companhia de um teledisco, deu a Prince um primeiro êxito colossal que acabaria por elevar as vendas do álbum a um patamar acima dos três milhões de unidades.
O sucesso confirmava assim a confiança que o músico tinha solicitado à editora, quando sugerira que, com tantas e tão longas canções gravadas, 1999 deveria ser um álbum duplo, embora vendido ao preço de um LP simples. Coisa rara naqueles tempos…
Além destas duas canções, o álbum inscreveu no cancioneiro de referência de Prince outros temas como Delirious, Let’s Pretend We’re Married ou Automatic, que ajudaram a reforçar este novo posicionamento de vistas largas que a música de Prince aqui assumia.
As novas aventuras entre os sons e as formas foram ainda acompanhadas por um aprofundar de temáticas já antes tateadas, desde explorações sobre o corpo e o desejo. De novo juntava-se uma estranha celebração de um fim (quase) anunciado, traduzindo o tema-título ecos de um medo de aniquilação nuclear que marcava o quotidiano de muitos de nós na alvorada dos oitentas, quando várias outras canções e telediscos traduziram o temor de uma guerra nuclear.
Ao quinto álbum, Prince confirmava assim o seu estatuto não só como um dos mais inventivos músicos do seu tempo, como se revelava definitivamente como uma figura capaz de juntar uma voragem criativa e desafiante a canções com enorme potencial de mercado. Com um novo álbum (e um filme) pelo caminho, em menos de dois anos tornar-se-ia numa das estrelas maiores do firmamento pop de então.
O êxito obtido por 1999 iniciava ainda, e sobretudo graças ao “confronto” entre Little Red Corvette e Beat It, lançados no formato de single com poucas semanas de intervalo entre si, uma “contenda” (mais mediática do que real) entre Prince e Michael Jackson, que ajudaria também a construir a figura de dimensão mítica com expressão internacional que o músico conquistaria e cimentaria entre este disco de 1982 e o sucessor Purple Rain, editado em 1984.
Texto de Nuno Galopim
A Antena 1 celebra o 40.º aniversário de 1999, recordando canções deste disco ao longo do dia.