Tinha passado o “boom” de 1980 e 81 e a ressaca que, entre os dois anos seguintes travou a enxurrada de novas bandas (a seleção natural tratou de separar trigo e joio). E, chegados a 1984, um panorama diferente desenhava um cenário para uma cultura jovem que, ainda emergente, tinha já ultrapassado os primeiros desafios, cometido os primeiros erros e tirado as devidas aprendizagens. É claro que havia uma cultura pop/rock made in Portugal desde o final dos anos 50 (epicentro original em Coimbra), com discos a partir de 1960. Mas a emergência de linguagens próprias depois dos mimetismo originais tinha levado o seu tempo, criando uma história que conheceria naturais sobressaltos com a revolução em 1974 o natural desvio de prioridades e entusiasmos noutros sentidos, só tendo a onda realmente “rebentado” na viragem dos setentas para os oitentas quando, com o mapa político e social estabilizado, uma nova cultura jovem, com expressões na noite, na música, na moda, finalmente, ganhou voz. Até porque tinham a mesma idade os músicos, os novos profissionais nos media, os novos editores e, claro, um público ávido por algo diferente… e seu. A coisa não se fez por menos e, entre 1980 e 81 bandas e artistas como os UHF, GNR, Lena d’Água (com e sem Salada de Frutas), Táxi, Trabalhadores do Comércio ou Rui Veloso mudaram o mapa do que era sucesso na música portuguesa, gerando fenómenos que ressoaram para lá das zonas urbanas onde, então, a cultura pop/rock tinha os maiores alicerces. Ao fulgor do entusiasmo destas estreias seguiram-se hordas de outras ideias e propostas (umas interessantes, outras nem por isso) e, entre 1982 e 83, ao mesmo tempo que ganhava visibilidade uma geração pop (dos Da Vinci aos Ópera Nova, passando por António Variações), abrindo ainda espaço de sucesso aos Heróis do Mar e Jáfumega, a “ressaca” apagava muitos que tinham surgido nos anos anteriores e revelava um interesse diferente pela (re)descoberta de linguagens mais próximas da música tradicional (Trovante e várias bandas de música de raiz tradicional). É por isso que 1984 entra em cena com todas estas etapas devidamente sedimentadas. E, no ano em que surgem o jornal “Blitz” (que teve um papel determinante neste processo) e o Concurso de Música Moderna do Rock Rendez Vous, encontramos num ponto de maturação mais evidente bandas que tinham já dado primeiros passos como a Sétima Legião, Xutos & Pontapés ou Ban, num momento em que nascem (ainda sem discos), nomes como os Pop Dell’Arte, Mão Morta ou Mler Ife Dada. 1984 foi também o ano da estreia em disco dos Rádio Macau. E convenhamos que esta foi a estreia certa no tempo certo.
A história já vinha de trás. Da escola. Na zona de Sintra. Uns rapazes e uma rapariga (mais nova). Animados pela emergência de uma nova cultura pop/rock, parte do grupo de amigos tinha gerado uma primeira banda: os Crânio. Nem todos eram músicos. Vitinha escrevia (com o tempo juntar-se-ia Pedro Malaquias a este mesmo espaço criativo). Aos outros coube o desafio de fazer nascer canções. Começam por se chamar Local 13. Depois Rádio Macau. A formação vai passando por mutações e pelos primeiros palcos. Surge uma primeira maquete. Canções como “A Noite” e “Drugstore”. A música começa a chegar às rádios. Gravam mais canções. E, depois de uma viagem de comboio a Lisboa, começam a entregá-las junto das editoras. A EMI-VC reage e chama-os. Xana completa os 18 anos a meio das sessões, que decorrem já em abril de 1984 nos estúdios da Valentim de Carvalho, com Pedro Vasconcelos, Francisco Vasconcelos e os próprios Rádio Macau a produzir. Das maquetes originais deixam algumas canções de fora, juntam composições mais recentes. E, chegados ao verão, o que era até então um segredo deixa de o ser. “Bom Dia Lisboa” ouve-se nas rádios. E o álbum chega aos escaparates com um título que não quer distrair atenções. E, seguindo a mais clássica das opções, apresentam… “Rádio Macau”.
Se na hora de escolherem um título optaram por uma solução “clássica”, frequente em muitas estreias, já na música mostravam, como o fariam outros nados de 1984, que o rock podia ser um ponto de partida mas com horizontes feitos de desafios (e personalidade). Se a força poética das letras e a vincada identidade vocal de Xana desde logo definiam uma zona demarcada junto destas canções, já os próprios caminhos pelos quais a música seguia ao longo de um alinhamento de nove faixas mostrava que estava aqui uma expressão de uma nova geração de bandas. Maior complexidade nas formas (algo que tinha nos GNR ou Heróis do Mar importantes pilares), jogos cénicos desafiantes, a presença dos sintetizadores (escute-se “É Mais Fácil” ou “No Cenário Habitual”), um sentido de vertigem, vincavam algo que não parecia apontar ao rumo das modas mas, antes, à exploração de uma personalidade (que, de resto, seria aprofundada logo no sucessor “Spleen”, dois anos depois). Note-se ainda que, anos antes da confluência de encontros que gerou o tributo “Filhos da Madrugada”, já José Afonso habitava, através dos Rádio Macau, as linguagens do novo pop/rock altermativo português. Uma versão festiva de “No Comboio Descendente”, que José Afonso havia criado a partir de um poema de Fernando Pessoa, fechava um alinhamento que hoje podemos reconhecer como um clássico dos oitentas. Pena que, até aqui, sem reedições apresentadas (e creio que nem sequer previstas) que pudessem, como o estão a fazer tantos outros lançamentos de arquivo, fixar estes episódios em que se fizeram momentos marcantes da nossa memória coletiva. Haverá nos arquivos registos áudio desta época que permitam traçar o processo criativo que levou os Rádio Macau a este disco? Há certamente fotografias, recortes… E histórias para contar… Não basta o streaming…