O Doce Poder da Música
"Para Shakespeare, a música tinha um poder transformador único. É pois este poder que esperamos reavivar em mais uma edição dos Dias da Música em Belém, totalmente dedicada a William Shakespeare, dias 18, 23, 25, 26, 27 e 28 de abril, no CCB, no Coliseu do Porto e no Convento de São Francisco em Coimbra.
Revisitar Shakespeare é sempre um desafio, dada a proliferação de estudos universitários, encenações e adaptações que foram sendo feitas ao longo dos tempos pelos mais diversos discursos artísticos – do teatro ao cinema, do ensaio à literatura, da dança à música. Contudo, se a sua biografia ainda é terreno de polémicas, a sua obra continua a fascinar pelo que tem de avassalador na abordagem da natureza das paixões humanas e a suscitar permanentes releituras. A música, em particular, tem uma profunda relação com Shakespeare, seja pelo que escreve sobre a música, seja pela forma como a sua obra fascinou e influenciou compositores de todas as épocas, dando origem a um vastíssimo repertório, da música de cena à ópera e ao ballet, do poema sinfónico à música para piano solo, da canção ao musical norte-americano.
A influência de Shakespeare fez-se sentir logo após a apresentação das suas obras, ainda no início do séc. XVII. Parte deste fenómeno está ligado à consciência que o próprio Shakespeare tinha da importância da música como elemento teatral, o que se pode comprovar pelas inúmeras indicações de cena relativas a momentos musicais. Isso levou a que, com tempo, produção após produção, fossem aparecendo novas abordagens que refletiam igualmente a evolução dos gostos e dos géneros musicais. Assim, em apenas cem anos, surgiram verdadeiras obras-primas musicais como Vénus e Adónis, de John Blow, e Fairy Queen, de Henry Purcell, para não falar da chamada música de cena como a que foi composta por Matthew Locke para A Tempestade, e por Purcell para Timão de Atenas, A Tempestade e Ricardo II.
Séculos mais tarde, durante o romantismo, compositores como Hector Berlioz continuaram a encontrar em Shakespeare uma constante fonte de inspiração. A Sinfonia Dramática Romeu e Julieta, Tristia ou Béatrice et Bénédict são um bom exemplo da adaptação da obra shakespeariana para a música; no entanto, Berlioz vai mais longe. Com a Sinfonia Fantástica e a respetiva sequela, Lélio, Berlioz assume uma verdadeira obsessão por Shakespeare. Na primeira, assistimos ao desespero do amor não correspondido por Harriet Smithson, atriz pela qual Berlioz se apaixonou aquando de uma representação de Hamlet. Na segunda obra, vemos o artista como que a renascer, inspirado em Shakespeare. Foi por causa de Shakespeare que se apaixonou e é por causa de Shakespeare que regressa à vida, salvando-se através da arte.
Berlioz é, assim, um bom exemplo da profunda admiração que o artista romântico tem por Shakespeare. São inúmeros os compositores que não lhe escaparam à influência, de Mendelssohn a Wagner, de Tchaikovsky a Prokofiev, de Verdi a Gounod. Este último era aluno do Conservatório de Paris quando Berlioz apresentou a sua Sinfonia Dramática Romeu e Julieta. O impacto foi tal que, quase 30 anos mais tarde, começou a compor a sua versão da peça de Shakespeare. Richard Wagner relata que, durante a sua juventude, costumava sonhar que conhecia Shakespeare «em carne e osso»! Seriam conversas a três, a que se juntava Beethoven, e que lhe dariam os ingredientes necessários para o seu «Drama Musical». Giuseppe Verdi, que nunca escondeu a sua admiração por Shakespeare, termina a sua longa carreira com Otello e Falstaff, consideradas por muitos como as suas melhores óperas. Só Romeu e Julieta teve mais de 20 adaptações para a música, sendo as mais conhecidas as versões de Bellini, Berlioz, Gounod, Tchaikovsky, Prokofiev e Bernstein.
Os Dias da Música em Belém procuram, assim, traçar um percurso que começa com essa evocação do poder inspirador da arte de Shakespeare feita por Berlioz, para depois nos deixarmos levar por uma série de caminhos alternativos, todos eles relacionados com Shakespeare – desde a música do tempo de Shakespeare até à música eletrónica dos nossos dias, passando obviamente por concertos dedicados exclusivamente a peças e/ou personagens marcantes do panteão shakespeariano. Não faltarão títulos como A Fera Amansada; A Tempestade; As Alegres Comadres de Windsor; Coriolano; Hamlet; Henrique IV; Macbeth; Medida por Medida; Muito Barulho por Nada; O Mercador de Veneza; Otelo; Rei Lear; Romeu e Julieta; Sonho de Uma Noite de Verão; Timão de Atenas e Vénus e Adónis, entre outros. Mas se estes Dias da Música em Belém se caracterizam por uma grande evocação do Bardo feita através da música, teremos no final a evocação da música feita por Shakespeare, tal como a encontramos nas falas de Lourenço no Mercador de Veneza, que o compositor Ralph Vaughan Williams transformou numa magnífica Serenata à Música para 16 Solistas, Coro e Orquestra.
Para tudo isto, contamos mais uma vez com alguns dos principais solistas e agrupamentos portugueses, a que se juntam reconhecidos músicos vindos dos principais palcos mundiais.
Graças à parceria do CCB com a Agência Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissional – ANQEP, alargamos os Dias da Música em Belém ao Porto e a Coimbra com a Orquestra do Festival, que resulta de um estágio feito com alunos de música vindos de todo o país (continente e ilhas), para apresentarem juntamente com coros locais o Sonho de Uma Noite de Verão, de Felix Mendelssohn, no dia 18 de abril, no Coliseu do Porto, dia 23 de abril, no Convento de São Francisco, em Coimbra, e no dia 25 de abril, no CCB.
A par deste estágio jovem, teremos igualmente pela primeira vez nesta edição uma série de masterclasses dadas por alguns dos solistas deste festival, contribuindo assim para uma ainda maior proximidade entre os artistas e o público.
Resta-nos assim esperar que se deixe mesmo transformar por este «doce poder da música», nesta edição dos Dias da Música em Belém dedicada a William Shakespeare."