Cate Blanchett podia ser definida à imagem do título do filme de Todd Haynes sobre Bob Dylan: I’m Not There – Não Estou Aí. Nesse filme, em que representava o cantautor numa das múltiplas etapas da sua carreira, aliava duas componentes para si essenciais na arte de representar: não ficar fixada a um certo tipo de personagens, ou seja, não se deixar arrumar numa categoria específica como Hollywood tanto gosta de fazer, e interpretar papéis em que, como é seu hábito, tente “desaparecer” ela própria na sua personagem. Tal como Martha Graham, bailarina e coreógrafa que revolucionou a dança moderna e cujo método admira, Cate Blanchett acredita que “o artista é tanto um veículo como um arquiteto, e que o processo pelo qual a arte é recebida do universo através dele está envolto em mistério”. Como lhe disse um encenador, por ocasião de uma adaptação de Tio Vânia de Tchékhov, não há mal em não saber o que uma personagem quer, porque as próprias mulheres tchekhovianas eram como o clima – mudam, estão constantemente a mudar e a variar e a mover-se através das coisas; e é por isso que são tão dinâmicas e excitantes.
No fundo, como a maestrina que interpreta em Tár, a atriz reflete aquilo de que é veículo como se o projetasse em toda a orquestra, ao mesmo tempo que arquiteta e traça o desenho do edifício sonoro como se cada músico a tocar um instrumento diferente fosse cada uma das personagens tão diversas que já interpretou e em que o seu eu se apagou para ser um bom condutor da música própria de cada uma delas. Porque Cate Blanchett é uma atriz conhecida pelas suas personagens multidimensionais e por abranger uma vasta gama de papéis. Basta lembrar a forma como encarnou Isabel I de Inglaterra em Elizabeth (1998), de Shekhar Kapur, cuja interpretação foi elogiada por captar a complexidade emocional da rainha na sua transformação de uma adolescente apaixonada em uma invencível e indomável figura política que reprime a sua vulnerabilidade emocional. Neste como em tantos outros papéis, incluindo o da maestrina Lydia Tár no recente Tár, de Todd Field, a atriz revela um extraordinário talento para interpretações matizadas, subtis, ambíguas e cheias de nuances.
Blanchett traz para as suas personagens aquela que é a sua marca distintiva: a complexidade. Como referiu a atriz Sarah Paulson, que com ela trabalhou três vezes, Cate Blanchett “é quase como mercúrio rolando sobre uma mesa. É totalmente evasivo e fugidio, e ainda assim ali mesmo à nossa frente. E em constante movimento e mudança de forma e … e algo que se cobiçaria. Queremos tocar nesse mercúrio”. Conhecida no meio como extremamente trabalhadora e detentora de uma incrível energia (numa entrevista recente revelou que ultimamente quase não dorme), a atriz não só se desdobra em múltiplos projetos como possui, em termos dramáticos, uma extraordinária capacidade de mutação. Se Alejandro G. Iñárritu, que trabalhou com a atriz em Babel (2006), disse sobre ela que era como uma pintura renascentista em que a luz vem de dentro, a verdade é que Blanchett é o protótipo do ator em todo o seu esplendor, polivalência e multiplicidade de talentos e recursos, bem à imagem de um artista renascentista e da própria definição do que deve ser um ator – estar preparado para servir qualquer personagem. Mas como grande atriz moderna que também é possui igualmente um instinto e um poder de mutabilidade que convoca de facto a metáfora meteorológica ou uma partitura e espectro sonoro – é capaz de tocar todas as notas e extrair de si uma personagem maior do que a vida como Lydia Tár e com uma genial obstinação que dela faz um “monstro sagrado” ou talvez apenas alguém com uma mestria artística fabulosa que contrasta com uma certa falta de virtuosismo humano.
Cate Blanchett é uma atriz que gosta de correr riscos e de baralhar as expectativas. “Estou em revolta contra o esperado e o óbvio”, afirmou por alturas da sua participação em O Talentoso Mr. Ripley, de Anthony Minghella (que a descreveu como o “Bach da representação”). Ao contrário de muitos atores da sua estatura, ela tem teimosamente confundido os esforços para a rotular e estereotipar ao nível dos papéis que tendem a propor-lhe – o tão habitual “typecast” (uma armadilha em que alguns atores um tanto ingénuos se permitem cair), ou seja, a “tendência para dar sempre a um ator o mesmo tipo de personagem para representar, geralmente porque ele ou ela é fisicamente adequado para esse tipo de papel”. Aos 53 anos, Blanchett obteve já quase todos os sucessos profissionais, artísticos e materiais que uma atriz de cinema e de teatro poderia esperar. Conta no seu currículo com dois Óscares e mais cinco nomeações (uma delas, por Tár, resultará certamente em mais uma estatueta), quatro Globos de Ouro (e mais oito nomeações), quatro prémios BAFTA (e mais três nomeações), assim como duas Taças Volpi em Veneza e numerosíssimos prémios de guildas de atores e associações de críticos de cinema, entre muitas outras distinções.