Chegado agora às salas portuguesas, “A Zona de Interesse”, o filme do inglês Jonathan Glazer que, em maio de 2023, arrebatou o Grande Prémio do Festival de Cannes, é uma nova — e, realmente, diferente — revisitação das memórias do Holocausto. E não apenas porque se inspira (de forma muito livre, importa dizer) num livro tão invulgar como é romance homónimo de Martin Amis, disponível em tradução portuguesa (ed. Quetzal, 2015). Acontece que se trata, aqui, de dar conta da vida privada dos oficiais nazis que geriam o campo de concentração de Auschwitz, a começar pelo seu comandante, Rudolf Höss.
Glazer é um cineasta descendente do realismo britânico, mesmo quando o aplica para lá dos seus limites tradicionais — recordemos o exemplo notável de “Debaixo da Pele” (2013), com Scarlett Johansson, que era, afinal, um conto de ficção científica. Neste caso, a pulsão realista está ao serviço da metódica descrição de um espaço muito particular: a casa da família de Höss. Cenograficamente, o visual do filme tem tanto de contundente como de inquietante: a casa, cuidadosamente tratada pelos criados, tem qualquer coisa de paradisíaco, ao mesmo tempo que, para lá do muro do jardim, a poucos metros de distância, estão os pavilhões do campo, com os prisioneiros que irão ser mortos com o gás Zyklon.
Raras vezes o cinema nos terá apresentado de modo tão esclarecedor o sistema de assassinato em massa concebido pela máquina de guerra de Adolf Hitler para exterminar o povo judeu. O impacto de “A Zona de Interesse” é tanto maior e perturbante quanto este é um filme de contidos efeitos dramáticos, apostado em expor as rotinas daqueles que estavam a cometer um crime hediondo.
Para lá da consagração em Cannes, “A Zona de Interesse” está muito bem situado na corrida para os Óscares de Hollywood, a atribuir no dia 10 de março. Segundo alguns analistas da indústria americana, será mesmo o favorito para arrebatar a distinção de melhor filme internacional. Acrescente-se que este é mais um título que confirma o desenvolvimento e os peculiares c ontrastes da carreira de Glazer, ele que começou por se distinguir como um brilhante realizador de telediscos — vale a pena revermos o seu trabalho para a canção “The Universal” (1995), dos Blur, com uma elaborada iconografia, claramente inspirada em “Laranja Mecânica” (1971), de Stanley Kubrick.
Texto de João Lopes
“A Zona de Interesse” é um dos destaques desta semana no programa “Duas ou Três Coisas”, de João Lopes e Nuno Galopim, para ouvir esta sexta-feira (depois das 23h na Antena 1, ainda antes na RTP Play).