A jornalista Salomé Filipe conta hoje no JN o caso de Pedro, “o primeiro cego doutorado em Direito” na Universidade de Coimbra. Pedro tinha 20 anos quando perdeu a visão. Estava no fim do primeiro ano da licenciatura em Curitiba, a cidade de Leminski, o genial Leminski que morreu demasiado cedo e aceleradamente míope, sem perder o fogo criativo que lhe permitiu inventar arqueiros cegos.
O luso-brasileiro Pedro Amauri de Oliveira chegou a Portugal há dez anos, cuidando que se tinha perdido do arco e da flecha de Leminski, impedido de ler tantos calhamaços e sebentas, “Coimbra é uma lição/ de sonho e tradição”. O caso do luso-brasileiro Pedro Amauri não está destinado a desaguar em comissão parlamentar de inquérito, a bengala dele tem sido a cadela-guia Java e um secreto desejo de luz.
Em dez anos de Coimbra, com uma bolsa de investigação nos Estados Unidos pelo meio, aprendeu braile e devorou bibliotecas, contrariando aquilo que Borges definiu como “lento crepúsculo”. No seu caso, a cortina da cegueira correu bruscamente. Foi dentro desse negrume que tacteou a arte de ver mais claramente visto. Em dez anos, acumulou licenciatura, mestrado, doutoramento. “Coimbra dos doutores/ para nós os teus cantores/ a fonte dos amores és tu”.
Borges que cegou depois dos 50, o que lhe deu tempo para abarcar a mais vasta biblioteca, sua ideia de paraíso, contou, certa vez, numa entrevista a Roberto d’Ávila: “Uma das primeiras cores que se perde é o negro. Perde-se a escuridão e o vermelho também. Vivo no centro de uma indefinida neblina luminosa. Mas não estou nunca na escuridão”.
Não espero de uma notícia de jornal sobre o primeiro cego doutorado em Direito em Coimbra, um tratado sobre a perda das cores, uma janela entreaberta para essa indefinida neblina. A notícia está, aliás, banhada por uma luz que emana, ela mesma, da apurada arte de ver que os repórteres também cultivam.
Ao contrário do cego de Landim que certa vez procurou Camilo em São Miguel de Seide, Pedro não teve os favores de um monge beneditino. Quando o monge se compadeceu dos tristes dias do filho do barbeiro da aldeia, tinha ele ainda lume no olho, e muito, como observa o novelista. O cego de Landim perdeu-se da luz do mundo já no Brasil onde o ofício de caixeiro não o impediu de aprender francês para ler Mirabeau. Cegou a golpes de látego desferidos por um militar imperialista, a crer na descrição de Camilo. Ainda assim, doutorou-se noutras artes. Quando se despede do escritor em São Miguel de Seide, o cego de Landim monta, garbosamente uma égua branca.
A notícia do JN está ilustrada com uma fotografia de Pedro defendendo a tese de doutoramento. A seus pés, Java, a cadela-guia. Repousando. Com a altivez de um alazão.