1.
A Celeste era um símbolo da liberdade.
O símbolo de que somos um povo generoso, solidário, um povo que mesmo na cólera se protege, que mesmo quando gritamos uns com os outros nos podemos abraçar a seguir.
A Celeste era o símbolo do 25 de Abril.
Foi ela quem distribuiu cravos aos soldados.
“Revolução dos cravos” escreveu-se em jornais de todo o mundo, uma revolução de flores em vez de sangue, de amor e esperança em vez de vísceras e morte.
2.
Celeste Caeiro trabalhava num restaurante e levara os cravos que o dono do sítio já não podia oferecer aos clientes pois todas as casas comerciais estavam obrigadas a fechar naquele dia de revolução.
De cravos na mão ofereceu o primeiro a um soldado que lhe perguntou se tinha um cigarro.
Não tinha.
Apenas um cravo.
E o soldado pôs o cravo na espingarda.
E o que vinha atrás também queria.
E o outro.
E outro ainda.
E depois centenas deles.
E depois ainda milhares de pessoas na rua com cravos que apareceram como se fosse um milagre.
3.
A mulher que distribuiu flores por não ter um cigarro, morreu numa sala de espera, completamente sozinha, no Hospital de Leiria.
Tinha 91 anos, falta de ar e uma pulseira amarela.
O cardiologista ainda não chegara.
E o Raio X seria feito apenas quando chegasse.
A Celeste, um dos símbolos maiores da nossa história contemporânea, esperou que a pudessem ver.
Estava sozinha na sala de espera onde aguardam os doentes com pulseira não absolutamente urgente.
E não incomodou ninguém.
Quando a chamaram já tinha adormecido.
Um sono pesado e impossível de quebrar.
4.
A Celeste é o símbolo da generosidade deste país que trocou sangue por cravos.
Mas é também o símbolo miserável da nossa crescente falta de empatia.
Da falta de empatia e de reconhecimento.
Da ignorância absoluta.
Morreu numa gélida sala de espera.
Sem que ninguém lhe tivesse dado a mão ou um cravo.
Texto e programa de Luís Osório
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