Miguel Ángel Criado escreve, no El Pais, sobre Alto Hospicio, a cidade que se ergue do pó, num dos extremos do deserto de Atacama, quase sempre rodeada de névoa, mas tão árida que nela chove menos de um milímetro de água por ano.
A pouca água de Alto Hospicio chega em camiões cisterna que atravessam o deserto ou através de quilómetros de condutas que cruzam um chão sob o qual dormem aquíferos contaminados pela exploração mineira.
Esta é uma prosa que ajuda a perceber o sentido de um verso da brasileira Maria Cecilia Brandi, num breve, belo e intenso livro intitulado “Atacacama”, em cujas 62 páginas parece ser-nos revelado o modo de descobrir veios de água nas palavras mais ressequidas. É o verso que fala da estrada, “única palavra ao alcance do horizonte”.
Os versos deste livro sugerem a permanência imóvel da névoa que rodeia Alto Hospicio: nessa lenta deriva das nuvens podemos “aprender a voar quietos”.
O texto de Miguel Ángel Criado revela entretanto o projecto posto em marcha naquele extremo de Atacama, visando mitigar a seca de uma das zonas mais áridas do mundo: trata-se de apurar uma tecnologia capaz de roubar, todos os dias, vários litros de água às nuvens que não se comovem sobre os telhados de Alto Hospicio.
Leio e fico a pensar num mercado que se possa abrir aos pastores de nuvens, cuja arte pudesse juntá-las em cardumes de água, vestidas só de vento.
Pastores de nuvens teriam deste modo um emprego seguro, com o seu cajado especial preparado para as descargas eléctricas do céu e com a sabedoria de poetas como Manoel de Barros que conseguiu levar a um apuro surpreendente a arte de ajeitar as nuvens nos olhos.
A tecnologia futura poderá surpreender-nos com a impressão de nuvens 3D, nuvens nascidas para chuva, mesmo oblíqua, e não para algodão em rama. Massas de água suspensas na atmosfera, trazidas desde a infância da chuva, a chuva no ovo, gotas tão invisíveis que acrescentassem um verso oculto entre aqueles com que Manoel de Barros nos apresenta um certo fotógrafo que tentou “fotografar o silêncio, coisa difícil”. Que conseguiu ele? “Fotografou um perfume de jasmim / no beiral de um sobrado”. E que mais? “Fotografou a Nuvem de Calças que vagueava / de braço dado com Maiakowski”.
Fico a pensar no fotógrafo capaz de fotografar a sede dos de Alto Hospicio, enquanto os pastores de nuvens não começam a ganhar o seu sustento nos confins do deserto de Atacama.